29.9.18

IMPROMPTU

E assim te foste, luz de vaga-lume,
feita de segredo e brevidade.
Impossível definir aquele perfume
que o teu surgir me trouxe nessa tarde.

Alberto de Lacerda


Labareda - Poemas escolhidos, Selecção e prefácio: Luís Amorim de Sousa, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Junho de 2018

22.9.18

CARÊNCIA

Eu não sei de pássaros
não conheço a história do fogo.
Mas julgo que a minha solidão deveria ter asas.

*

LA CARENCIA


Yo  no sé de pájaros,
no conozco la historia del fuego.
Pero creo que mi soledad debería tener alas.

Alejandra Pizarnik


Antologia Poética (edição bilingue), Tradução de Alberto Augusto Miranda, Selecção de Poemas de Alberto Augusto Miranda, António Sá Moura, Carlos Saraiva Pinto, o correio dos navios | estratégias criativas, Porto

19.9.18

FILMITALUS

1.

Quando se apagavam as luzes no Sonoro Cine
e no ecrã aparecia a palavra Filmitalus
a tremer como se estivesse à superfície
dum líquido sobre o qual fossem pingando
finas gotas de som (de cítara, parecia),

nós, que com quinze anos tínhamos entrado
(porque o polícia compincha fechou os olhos)
para um filme para maiores de dezoito,
já sabíamos que o filme que aí vinha
era dos 'tais' -- quero dizer, dos que mostravam
beijos que escaldam, alguma coisa
das coxas de uma mulher, alguma coisa
duma cena de alcova,

não demasiado, mas o suficiente
para mais tarde, já entre lençóis,
ajustarmos contas com a actriz, mediante
os manejos solitários do costume --
aquilo a que, por riso e não por pudor,
dávamos o pitoresco nome de gaiola.

2.

E isto no tempo em que Deus não era mais
que uma desajeitada
distorção de si mesmo e, pela severa
boca dos seu vigários, proibia
masturbações e manobras afins --

-- o que, uma vez apaziguadas as hormonas,
nos trazia ressacas contritas, arrependimentos,
juras de que aquela tinha sido a última vez.

Mas agora pergunto eu:
se nos queria castos, arredados do corpo,
porque permitia Deus que se fizessem filmes assim
e houvesse mulheres como Anna Magnani
-- que nos abrasavam e tão facilmente
forçavam as muralhas da nossa castidade?

A. M.Pires Cabral

Trade Mark, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, Agosto de 2018

17.9.18

Guerra

O dedo a tremer de uma mulher
Percorre a lista de vítimas
Na noite da primeira neve.

A casa está gelada e a lista é longa.

Estão lá os nossos nomes todos.

*

War


The trembling finger of a woman
Goes down the list of casualties
On the evening of the first snow.

The house is cold and the list is long.

All our names are included.


Charles Simic

o último soldado de napoleão, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, edição Sérgio Ninguém/Eufeme, Setembro de 2018

16.9.18

LOBOS? SÃO MUITOS

Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.

Hilda Hist


[Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, Ed. Massao Ohno, S. Paulo, 1974]

O POVO, MEU POEMA, TE ATRAVESSA, Antologia poética de língua portuguesa nos cem anos da revolução de outubro, Selecção e Prefácio, Francisco Duarte Mangas, Modo de Ler - Centro Literário Marinho, Lda., Porto

5.9.18

POESIA AMERICANA

Embora o nome deles
Não deva ser revelado,
Muddy Waters chamava-se
Mckinley Morganfield,
Howlin' Wolf chamava-se
Chester Burnett,
Bo Diddley chamava-se
Elias Mc Daniels,
Sonny Boy Williamson chamava-se
Aleck Miller,
Slim Harpo chamava-se
James Moore,
E Bob Dylan chama-se
Robert Allen Zimmermann.

José Pascoal

NERVO / 3 colectivo de poesia setembro-dezembro 2018

1.9.18

cançoneta para um ausente

não sei se ainda bolinas
e se te é farta a colheita
dos apêndices
se trabucas ou petiscas
donzelas do intendente

não sei nem o ar de tua
tumba sequer desmente
se ainda inoculas
a rubros golpes de tinto
as musas dos sonetos

não sei sadino irmão
se há ainda eficaz
remédio
pois nesta bela choldra
muita lírica se assemelha
a putrefacto excremento

João Rios

Não é grave ser português, capa Pedro Pousada, Abysmo, Lisboa, Abril 2018