19.9.18

FILMITALUS

1.

Quando se apagavam as luzes no Sonoro Cine
e no ecrã aparecia a palavra Filmitalus
a tremer como se estivesse à superfície
dum líquido sobre o qual fossem pingando
finas gotas de som (de cítara, parecia),

nós, que com quinze anos tínhamos entrado
(porque o polícia compincha fechou os olhos)
para um filme para maiores de dezoito,
já sabíamos que o filme que aí vinha
era dos 'tais' -- quero dizer, dos que mostravam
beijos que escaldam, alguma coisa
das coxas de uma mulher, alguma coisa
duma cena de alcova,

não demasiado, mas o suficiente
para mais tarde, já entre lençóis,
ajustarmos contas com a actriz, mediante
os manejos solitários do costume --
aquilo a que, por riso e não por pudor,
dávamos o pitoresco nome de gaiola.

2.

E isto no tempo em que Deus não era mais
que uma desajeitada
distorção de si mesmo e, pela severa
boca dos seu vigários, proibia
masturbações e manobras afins --

-- o que, uma vez apaziguadas as hormonas,
nos trazia ressacas contritas, arrependimentos,
juras de que aquela tinha sido a última vez.

Mas agora pergunto eu:
se nos queria castos, arredados do corpo,
porque permitia Deus que se fizessem filmes assim
e houvesse mulheres como Anna Magnani
-- que nos abrasavam e tão facilmente
forçavam as muralhas da nossa castidade?

A. M.Pires Cabral

Trade Mark, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, Agosto de 2018

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