31.8.19

HISTÓRIA UNIVERSAL

Um homem nasce chora cresce ri
sofre e faz sofrer caminha canta
tem sede fome frio medo pressa
perde-se transborda arde sorri.

Um homem sozinho no meio da noite
assobia para amansar os monstros que o habitam.

Abraça empurra mata beija morre
cansa-se de si mesmo apaixona-se
dá-se à vida sabe que se acaba
que escorre o que é por entre os dedos.

Um homem olha o céu as nuvens e diz-se
em silêncio que breve
que bela e fugidia é, foi, a vida.

*

HISTORIA UNIVERSAL


Un hombre nace llora crece ríe
sufre y hace sufrir camina canta
tiene sed hambre frío miedo prisa
se pierde se desborda arde sonríe.

Un hombre solo en medio de la noche
silba para amansar las bestias que lo habitan.

Abraza empuja mata besa muere
se cansa de sí mismo se enamora
se da a la vida sabe que se acaba
que se cae lo que es de entre sus dedos.

Un hombre mira el cielo las nubes y se dice
en silencio lo breve
lo hermosa y fugitiva que es fue la vida.

Juan Vicente Piqueras

INSTRUÇÕES PARA ATRAVESSAR O DESERTO, poemas escolhidos, tradução João Duarte Rodrigues e Manuel Alberto Valente, Assírio & Alvim, Fevereiro 2019

28.8.19

Sobre a correspondência

Quando o correio chega cedo
     Sinto-me defraudada
           Por já não ter
               De aguardar por ele.

*

On letters


When the post comes early
      I feel cheated,
         Not having it now
            To look forward to.

Neil Curry

companhia a Mrs Woolf, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, edições de Sérgio Ninguém/Eufeme, Setembro 2017

24.8.19

ARTE POÉTICA

Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver só na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso.

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.

Também é como o rio interminável
Quem passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.

Jorge Luís Borges

POEMAS ESCOLHIDOS, Selecção feita pelo autor, tradutor, Ruy Belo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Outubro de 1971

15.8.19

OS ARREDORES DO MAR, OS SUBÚRBIOS DA NOITE

II

2.

Esse tumulto anda, ouvido anda no ar, esse grave que
cresce, excessivo ligeiro.
Excessivo ligeiro, o deslize veloz, no sentido do grave,
no sentido da noite.
No sentido da noite, rumor evoluindo, no sentido da noite,
reversivo do mar.

Luís de Miranda Rocha

OS ARREDORES DO MAR, OS SUBÚRBIOS DA NOITE, Editora Limiar, Maio 1993

13.8.19

PALAVRAS

Faço a travessia da noite
acossado por palavras.

Saem-me ao caminho com o cães
que guardam hortas,
ladram-me, procuram
morder-me os calcanhares.

Indóceis, sempre soturnas,
as palavras?

Pois são.
Mas é com elas que deito
remendos trapalhões
nesta espécie de sono com que à toa
e ingenuamente julgo limitar
os danos com que, com suas baionetas,
a noite me danifica.

A. M. Pires Cabral

A noite em que a noite ardeu, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2015

3.8.19

FORÇAS DE BLOQUEIO

Um padeiro com seios de ministro
Um jardineiro com sangue na relva
Um bispo sem púbis
Uma metáfora com coxas de rainha
Uma alforreca arrependida
Um bigode de freira seguido de beijo ortopédico
Uma vulva de gasolina Alberta toda a noite
Outra alforreca arrependida
Um piolho com crista de gato
Diversas pontadas nas costas
Um escalope com punho de renda
Um saco esotérico com pegas de cernelha
Um compasso de esper(m)a
E ainda
Certos outros rumores

João Gesta

Uma falha nos dentes, Porto Editora, Porto, maio de 2019