29.1.17

auto-retrato 60

depois temos o resto da vida

e não chega

para descobrir que no seio materno
já havia uma gramática

Paulo José Miranda

auto-retrato, abysmo, Lisboa, Abril, 2016

19.1.17

POEMA DE INVERNO

Veio de longe, e mal chegou
partiu para mais longe ainda:
só o tempo justo para fazer
das águas dormentes  do meu trôpego
coração
um rumor de sílabas matinais.

Como toda a gente que partilha
com a luz a sua vida
era muito inocente, trazia do local
onde nascera
o ardor das coisas do mar.

Não sei de alegria mais pura
como a que morava nas molhadas
pedras dos seus olhos,
e baila ainda nas chamas
em qualquer lugar da casa.

Ao fim da tarde, o canto
do pequeno pássaro e o vento diziam
a mesma coisa: não deixes o incêndio
do deserto invadir-te o coração.
Sem que tu o suspeites, sequer.

Eugénio de Andrade

Os Sulcos da Sede, Editora Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Setembro 2001





17.1.17

Gestos

Um dia vamo-nos. Todos, 
ainda que haja variações no modo de partir,
a uns sobram-lhes asas
e outros enredam-se nas ervas daninhas
com o rosto colado ao lodo.

Aos que anseiam subir
e beijar as estrelas é conveniente
que saibam olhar o alto
sem se demorarem na idolatria.

Na montanha gelada há sempre lugar
e só o tempo aponta o caminho da neve
para alguns, não há desvios
para outros, todos os caminhos são desvios.

A única coisa que fica é o pó
uma definitiva mão
que tudo anoitece.

Maria João Cantinho

DO ÍNFIMO, Coisas de Ler Edições, Lda., Lisboa, 2016

9.1.17

[Álvaro de Campos]

(...)

Álvaro de Campos
o nome soava a qualquer coisa
e deu bastante que falar nos escritórios
e nas salas de jantar

o namorado duma aluna
um daqueles rapazes
a quem se vislumbra futuro
e até já tinha colaborado 
numa revista
afirmou que se tratava dum poeta
que não era dos mais falados
que estava ainda noutra onda
que não tinha nada que ver
com as mais recentes linhas poéticas
que se passavam todas
nas imediações da casa
bar rua transportes engates
actos quotidianos
que não se davam a fitas
de olhar para a lua
pois sabendo procurar
poesia há em todo o lado
até ou mais ainda no caixote do lixo
problema é a falta de vocações
e riu-se
depois explicou ao amigo
que foi numa jogada dessas
que conheceu a namorada

(...)

Alberto Pimenta

al Face-book, Editora 7 Nós, Porto, 2012

8.1.17

Chamaremos umbral

Chamaremos umbral o lugar de onde,
inteiramente nus enfim, partimos.
Sendo partir ir gravitar, conforme
o núcleo poderoso de vazio
acenda, desde longe,
o apelo de destino.
Que tudo canta, ou sofre,
desde essa densidão de corpo antigo
que chega a ciência quando se eleva um nome
do nome que o havia precedido.
E, assim, amarmos, sobe da lei. Comove
o peso de substância e o do olvido
com que a sombra persegue e intensifica a fome
de corpos violentos e sombrios.
Até encostarmos o ouvido à morte.
E ver seu nome de si, enfim, despido.

Fernando Echevarría

SOBRE OS MORTOS, Edições Afrontamento, Porto, 1991

7.1.17

O OUTRO

Feridas mais fundas do que em mim
abriu em ti o silêncio,
estrelas maiores
enredam-te na rede dos seus olhares,
cinza mais branca
repousa sobra a palavra em que acreditaste.

Paul Celan

A MORTE É UMA FLOR, POEMAS DO ESPÓLIO, Tradução, posfácio e notas de João Barrento, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1998

5.1.17

(ser pedra)

com os pulsos abertos,
escrevi a vida nas pedras,
o sangue era a tinta,
escrevi até ser pedra.

Sérgio Ninguém

PEDRA, Edição de autor [COLECÇÃO: POETAS DA EUFEME], Novembro de 2016

3.1.17

Nós, deste tempo, avessos

Nós, deste tempo, avessos, imprecisos,
hóspedes, apóstrofes, relicários, suaves
por dentro, velozes na intimidade, leves,
rubros, talvez sentimentais, a quem é dito
que de nada vale antever erros ou soltura
encher a cabeça de desejos facas fumos
guerras surdas quartos vidas coisas vagas

Nós que com aspirinas esfareladas
nas gavetas umas poucas gravações
piratas de vozes amargas de amores
antigos em trampolins e em torno
ecrãs sem raízes, nervuras, biombos,
ecos, dentes, língua, fita-cola, saliva,
elegias, custos de vida, falésias, tudo,
vamos antevendo os erros e a soltura

Miguel Cardoso

Víveres, Edições tinta-da-china, Lda.,Lisboa, Julho de 2016