18.2.19

MUSA, SINCERAMENTE

Musa, sinceramente, vai chatear o Camões.
Que podem os poetas, diz-me, contra marketeers,
aguados humoristas e outros promotores
da realidade? Eu sei que não identificas  real
com verdadeiro, nem sequer com existente,
mas que valor pode ter uma metáfora sem preço,
por brilhante que seja, neste mundo de gritos,
de sementes apagadas em lameiros de cimento?
Tu não vês o telejornal, Musa? Nunca ouviste
falar da impermeabilização dos solos na cidade
de Deus, do entupimento das artérias cerebrais?
Pensas que estás no século XIX? Mais, julgas-te
capaz de competir com traficantes de desejos,
decibéis e abraços? És capaz de fazer rir um
desempregado, de excitar um espírito impotente?
Consegues marcar golos «geniais» como o Ricardo
Quaresma, proteger do frio as andorinhas,
transportar as crianças à escola? Se achas que sim,
faz-te à onda do mercado, Musa, e boa sorte.
Mas não contes comigo para te levar à praia.
Sabes perfeitamente que detesto areia, sol
na testa e mariolas de calção. Vá, não me maces.
Pela parte que me toca, ficamos por aqui.

José Miguel Silva

LADRADOR, AVERNO | 2012

12.2.19

Xerazade

Há quase mil noites que estou a inventar,
dói-me a cabeça, tenho a língua
seca e esgotadas as capacidades
e a imaginação. Nem sequer sei
se as minhas mentiras me salvarão.


Sherezade

Llevo casi mil noches fabulando,
me duele la cabeza, tengo seca
la lengua y agotados los recursos
y la imaginación. Y ni siquiera
sé si me salvaré con mis mentiras.

Amalia Bautista

Tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, Eufeme magazine de poesia 10 Janeiro/Março 2019, Editor Sérgio Ninguém 

11.2.19

NOSTALGIA

Cada vez mais escassos
os momentos que quero recordar:
alguma manhã de Primavera,
alguma tarde de Outono,
algum instante em que ocorreu
desistir de imaginar
como será o mundo,
depois de o abandonar.

José Alberto Oliveira

Telhados de Vidro, N.º 23 . Novembro . 2018, Averno, Lisboa

9.2.19

Canivete

A cheirar ainda a laranjas
depois de anos nesta gaveta
entre botões, clipes,
envelopes e óculos velhos...

uma prenda tua;
destinado a cortar,
é a coisa que nos liga
de algum modo.


Penknife


Still smelling of oranges
after years in this drawer
among buttons, paperclips,
envelopes, old specs ...

a present from you;
designed to sever,
it's the one thing
that somehow connects.

Pat Boran

o sussurro da corda, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, edições Sérgio Ninguém/Eufeme, Dezembro 2018

6.2.19

POEMA

Para o banquete com talheres de prata
chegam os poetas com as musas ao colo
elas todas nuas
eles de gravata

servem-se as lagostas
ao som do piano
e depois a carne
carne de licorne
desce de aeroplano

tudo com muitos vinhos
de vários sabores
por copos infindos
como são os amores

e após o banquete
entre aves canoras
os poetas e as musas
saem para o espaço
em camas voadoras

António José Forte

Uma Faca nos Dentes, Prefácio de Herberto Helder, Desenhos e fotografias de Aldina, Parceria A. M. Pereira Livraria Editora, Lda., Lisboa 2003

4.2.19

DESESPERO

Nem a alegria nem o amor
poderemos esquecer à entrada dos bosques
quando regressamos,
quando uma rosa de sangue se abre de
par em par
nas janelas abertas pela pancada dos
ventos.
E aí,
caminhando para as fontes,
as mulheres do silêncio, as irmãs, as mães,
enchem os cântaros da sua melancolia.
Já se foram embora,
já ninguém as vê,
quando ao anoitecer as chaminés soltam
o fumo,
e mais longe, debilmente,
se ouve uma canção desesperada.

José Agostinho Baptista

ANJOS CAÍDOS, Assírio & Alvim, Outubro 2003