30.5.21

O poeta

a G.C
cf «Ourives-Gravador»


Procuro na linguagem (ainda)
a poesia desse ourives-gravador
o fazedor exímio dos versos onde vibra
a imagem tensa ígnea e viva

de uma arte talvez perdida
mas por ele mantida como densa
água até ao fim da existência
Procuro ao lê-lo recuperar a leveza

ou o peso da poesia livre
dos tortuosos caminhos do amor
Com o poeta tive a lição de fogo

o cristal e a chama  A pessoana dor
lida a que vale a pena projectar:
o selo de água o som crepuscular


António Carlos Cortez

skin deep
, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Março de 2021

29.5.21

POEMA QUASE INÉDITO

Ali está a casa, o cálido lume
da nossa alegria, a casa comum
sem rua e sem portas. A casa
onde entramos pesados
e adormecemos liber(a)tados.

Ali está a casa, o longo namoro
entre a chama e a fúria desejada.

A casa do universo,
da tua boca e seus saberes:
por nós aconchegados
e ao vento disseminados.

Aqui está a casa, o movimento
lento do corpo no corpo,
a imensidão fraterna e impensada...

Aí tendes a vossa casa:
e dentro dela toda a nudez
e a alegria desejada.

António Teixeira e Castro

MOROSIDADE DO FOGO, Editora Labirinto, Fafe, 2021

27.5.21

monólogo do estrangeiro

de milagres nada sei
nunca vi pão transformando-se em rosas
nunca ouvi vozes no alto da montanha
nem anjos à minha volta
tocando cítara

de milagres sei apenas o que li
em monges profetas santos
mas tudo me parecia exterior
longínquo mesmo

de milagres sei
no entanto
esta hipótese de ter podido ser nada
mas afinal todos os dias abrir os olhos

abrir os olhos e ver
árvores rios pessoas
enfim
este milagre imenso
que diariamente vou vivendo
o melhor que consigo
e sei


Victor Oliveira Mateus

uma casa no outro lado do mundo, Editora Labirinto, Fafe, 2021

18.5.21

[O hálito do Tâmega, mais intenso ao fim da tarde,]

O hálito do Tâmega, mais intenso ao fim da tarde,
nos saltos dos escalos. Uma bolinha de broa trazia o
[despique,
o convívio. Pedras achatadas saltavam na lisura da água:
o rapaz e o rio. Eu amava ver a chuva a cair sobre o rio
e os peixes vinham à tona beijar os pingos. Depois do
[açude
musical, de rendada espuma, a água parava,
escura. Teias de aranha nas covas e peixes lentos.
O guarda-rios pintava as pedras do côrrego.
O rio tinha alguns pequenos açudes que eram afinal
[murmúrios.
Só ao fim de alguns anos percebi o que ele me queria dizer.

Adelino Ínsua

Decantações, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Dezembro de 2020

11.5.21

ESTRADA DE CINZA [O vinho não existe sem veneno]

O vinho não existe sem veneno
gramática sem verbos para conjugar
na estrada de cinza


António Ferra

ESTRADA DE CINZA, Eufeme Poesia, Leça da Palmeira, Abril de 2021

5.5.21

DADOS RECENTES

Os dados mais recentes apontam no sentido
De uma fatalidade
Inverosímil,
Irreversível.

José Pascoal

BRANZA, Editorial Minerva, Lisboa, Agosto de 2019

2.5.21

AS MÃES

     (lendo Goethe)


As mães são
as cuidadoras.

A elas
é dado o barro
com que moldam as formas
as criaturas
cada qual com a sua vida...

Vidas longas
vidas breves
as mães cuidadoras
são cegas
não dizem às criaturas
o tempo dado
de espera

Yvette K. Centeno


DIZER, Eufeme Poesia, Fevereiro de 2021, Leça da Palmeira - Portugal