25.5.20

Tem coroa

Aparenta ser um rei,
tem coroa, é Corona,
mas de que reino não sei,
o vírus que reis destrona

e que infecta presidentes,
soldados e generais,
e com o freio nos dentes
trata todos como iguais,

pobres, ricos, poderosos,
ignorantes e cultos,
previdentes, desastrosos
idiotas resolutos

que com grande impertinência
mandam postas de pescada
e dizem, com insistência,
que o vírus não vale nada.

Fosse um novo cão de fila
que ferrasse o inimigo,
mas ameaça, à má-fila,
qualquer um: eis o perigo!

© Domingos da Mota

20.5.20

EGOÍSMO

Que me importa
amor
que seja dia
ou que seja a noite iluminada

Que me importa
amor
que seja a chuva
ou um novelo de paz a madrugada

Que me importa
amor
que seja o vento
ou a flor o fogo mais aceso

Que me importa
amor
que seja a raiva

Que me importa
amor
que seja o medo

Maria Teresa Horta

MINHA SENHORA DE MIM, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Abril de 1971

PARA FAZER UMA PRADARIA

Para fazer uma pradaria
É preciso um trevo e uma abelha
Uma abelha e um trevo
E fantasia
A fantasia se a houver
fará
O que a abelha não fizer

Emily Dickinson

Tradução de Jorge Sousa Braga

 Emily Dickinson (1830-1886), USA, in Facebook, página de Jorge Sousa Braga, 16 de maio de 2020, às 18:53

18.5.20

AVISOS

É proibido rezar, espirrar
Cuspir, elogiar, ajoelhar-se
Venerar, uivar, expectorar.

Neste recinto é proibido dormir
Inocular, falar, excomungar
Harmonizar, fugir, interceptar.

É estritamente proibido correr.

É proibido fumar e fornicar.

Nicanor Parrra

ACHO QUE VOU MORRER DE POESIA [de Obra Gruesa (1969)], Selecção, tradução, prólogo e notas Miguel Filipe Mochila, Língua Morta, Outubro de 2019

12.5.20

Descalço

Só o descalço deixa marcas no caminho.
De lés a lés percorre a cidade, e ninguém o vê.
A todo o instante atravessa o medo, e ninguém o segue.
Em cada esquina estende a mão, e ninguém o louva.
Só o descalço deixa marcas no caminho.

Só o descalço deixa marcas no caminho.
Diante do sol inventa a manhã, e ninguém o ajuda.
À sombra da árvore abraça a tarde, e ninguém o entende.
Sem eira nem beira edifica a cidade, e ninguém o copia.
Só o descalço deixa marcas no caminho.

Só o descalço deixa marcas no caminho.
Até à loucura conhece as pedras, e ninguém o escuta.
À volta da cidade desdobra o canto, e ninguém o acolhe.
No fundo da noite rasga uma ferida, e veste-se de luz.
Só o descalço deixa marcas no caminho.

Mário Cláudio

Doze Mapas: Poesia Reunida, 1969-2019, prefácio António Carlos Cortez, Edição Glaciar, Lisboa, Outubro de 2019

10.5.20

MULHERES E ÁRVORES

Quando as árvores começam a vestir-se
as mulheres começam a despir-se
Quando as árvores começam a despir-se
as mulheres começam a vestir-se

Jorge Sousa Braga

A Matéria Escura e Outros Poemas, Assírio & Alvim, Porto Editora, Março  de 2020

9.5.20

Outras Viagens

*

aproxima-te do fundo. Da enxada a bater na pedra.
Ou da lama pastosa onde se enterram os pés.
No que não encontrares estará a verdade:
quanto mais fundo, mais nada: uma descida completa.
O fundo é o sítio que os mortos não frequentam com a sua
exactidão.
É a exactidão de um sítio.
Um sítio exacto nem os mortos acolhe.

Rui Nunes

Nocturno Europeu, Relógio D'Água Editores, Novembro de 2014

7.5.20

[Nem uso relógio]

Nem uso relógio.
Há tanta forma de contar o tempo:
Um cigarro dura
cinco minutos,
uma noite de sono oito
horas,
um amor,
um amor,
uma vida,
uma vida.

André Tecedeiro

O Boletim da Pauta, Edição/transcrição: Hélder Teixeira, Abril 2020 #5

3.5.20

ANTÍGONA

Dirão talvez que a
morte não recusa a indulgência.
Às vezes apetece desistir a
meio da corrida
e entregar o corpo à tempestade.

Outros se levantam na vertente declivosa.
De novo se levantam sem
contar as sílabas,
sem medir o lucro.

A cerveja, a juventude, as esplanadas,
o amor: podia
ser tudo tão simples.

José Carlos Barros

O Uso dos Venenos, Língua Morta, Outubro de 2018

1.5.20

Primeiro de Maio

    Tanta bandeira
     vermelha

     Teresa Horta


Tanta bandeira
vermelha
tanto sol
quanta alegria
tanta gente
nova e velha

ombro a ombro
de mãos dadas
rua afora
neste dia.
Fosse agora
como outrora

maré alta
um mar de gente:
tanta bandeira
vermelha
a drapejar
livremente.



© Domingos da Mota