27.1.16

Variações sobre o SONETO DO CROQUETE

                 de Luís Filipe Castro Mendes


Não fui embaixador. Mas o croquete
também me atravessou o gorgomilo:
introito gustativo do banquete
servido com primor e melhor estilo;
não digo que o provei de mil maneiras,
por vezes era apenas mais um frete
tendente a mitigar as costumeiras
retóricas balofas; e o topete
de quantos insuspeitos comensais
que metiam no bolso alguns talheres
como se fossem modos naturais
de aprofundar costumes e saberes,
em congressos, lições e conferências
de doutas e distintas excelências.

© Domingos da Mota

19.1.16

Branco no Branco

V


Um amigo é às vezes o deserto,
outras a água.
Desprende-te do ínfimo rumor
de agosto; nem sempre

um corpo é o lugar da furtiva
luz despida, de carregados
limoeiros de pássaros
e o verão nos cabelos;

é na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.

O real é a palavra.

Eugénio de Andrade

Branco no Branco, Editora Limiar, Setembro de 1984

16.1.16

Grande-angular

Zingamocho, cata-vento,
brilhantemente rotundo,
insofismável portento
de transbordante penumbra;
vira o disco e toca a esmo,
o mesmo que se desdobra
e contradiz a si mesmo
em logorreia de sobra
que dirão maquiavélica,
pois a língua sibilina
tanto é apologética,
como cáustica, assassina
(quantas vezes por detrás
de um elogio sagaz).


© Domingos da Mota


13.1.16

Leva artes de pavão

Vira à esquerda e à direita
o falador do dianho
e com tal jeito se ajeita
na ilusão do rebanho

que não há mal nem maleita
que possa desfeitear
a faculdade perfeita
de tão bem dissimular.

Vai à feira vender galos,
leva artes de pavão;
não há como refreá-lo,
ao olhar a multidão

que na feira compra gato
por lebre, ao desbarato.


© Domingos da Mota


11.1.16

recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno almoço

Al Berto

HORTO DE INCÊNDIO, Assírio & Alvim. Lisboa, Março de 1977

9.1.16

A MESA

O jornal dobrado
sôbre a mesa simples;
a toalha limpa, 
a louça branca

e fresca como o pão.

A laranja verde:
tua paisagem sempre,
teu ar livre, sol
de tuas praias; clara

e fresca como o pão.

A faca que aparou
teu lápis gasto;
teu primeiro livro
cuja capa é branca

e fresca como o pão.

E o verso nascido
de tua manhã viva,
de teu sonho extinto,
ainda leve, quente

e fresco como o pão.

João Cabral de Melo Neto

POESIA COMPLETA, 1940-1980, Prefácio de Óscar Lopes, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Maio de 1986

3.1.16

da vida humana

4


para quê dar-te o sopro, o útil
sopro de respirares?
o espelho da homenagem, a
compostura da pose?

para quê escrever o exagero
do que és? inventar-te
num jardim das delícias, as torturas
que simulas? terás alma?

amaste alguém? sofreste?
para que hás-de cumprir-te ou ouvir música,
afivelar a máscara, a diferença
dos seus lugares comuns?

nenhuma loquaz
invenção te suscita.

Vasco Graça Moura

Os Rostos Comunicantes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984

2.1.16

O TER E O DAR

Não me peças, ó vida, o que não dás.
Se o que sempre pedi nunca me deste,
e ao que não me atrevera tu trouxeste
às minhas mãos sem jeito de o conter,

para que pedes o que não me dás?
Se nada tenho do que desejara
e tendo tanto por que não esperara,
como hei-de dar-te, sem jamais saber

que meu foi teu, que teu foi meu, que nosso
foi só de empréstimo, como hei-de ou posso,
entre o que tenho, decidir e dar?

E como ao que não tenho hei-de perder,
pelo que me darias a escolher
como se fora tempo de acabar?

1961

Jorge de Sena

PEREGRINATIO AD LOCA INFECTA
70 POEMAS E UM EPÍLOGO, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969