28.11.23

PALESTINA

Não são donos sequer da sombra
Que no chão projectam ao passar.

Tudo ou quase tudo lhes foi tirado
A terra, os ribeiros, as ovelhas dispersas pela terra
Os títulos de posse das pequenas quintas.

Tudo ou quase tudo
Menos o futuro amarrotado num bolso
Menos a esperança, menos o olhar.


José do Carmo Francisco

INVENTÁRIO DAS TRAVESSIAS,
 Antologia Poética, Organização Pedro Miguel Salvado, António Lourenço Marques, Moana Soto, Stefania di Leo, Carlos Serrão, Editora Labirinto, 2023, Fafe

14.11.23

A pedra

A mão -
que é flor do espírito.

Quem,
cercado em terra própria,

não deixará na mão
florir a pedra?

Junho, 2017

João Pedro Mésseder


A QUEM PERTENCE A LINHA DO HORIZONTE?
, Edição Página a Página - Divulgação do Livro, SA, Maio de 2020

9.11.23

[Decai co'a tarde a luz]

Decai co' a tarde a luz
quando o mundo declina o anoitecer
em que adormece.

Caem co' a calma as colinas breves
sobre as planícies azuis; Caem as folhas
como caíam aquelas aves que até hoje

caem, de poema em poema
e nem o seu corpo se destece
quando já na página de água navegam


Manuel Gusmão

Pequeno Tratado das Figuras, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2013

8.11.23

UMA VOZ VINDA DO OLIVAL

O eco veio do olival.
Eu estava crucificado no fogo
e dizia aos corvos: não me devoreis.
Eu poderia voltar a casa,
talvez chovesse
e a chuva pudesse...
apagar aquela madeira carnívora!

Um dia descerei da minha cruz.
Mas como poderei, então,
voltar a casa, nu e descalço?


Mahmud Darwich

O Jardim Adormecido e outros poemas, Selecção e tradução de Albano Martins, Campo das Letras, Editores, S. A., Porto, Maio de 2002

6.11.23

Vulgar

Do discreto cinismo que se alegra
com o ar de tristeza de quem passa,
ao abraço apertado que pespega
um beijo traiçoeiro na desgraça;
do encolher de ombros, como regra,
à crescente arrogância que perpassa
e balança entre o tom da cegarrega
e a malcriadez que embaraça,

às salvas: como está? - Assim-assim,
mais ou menos, cá vou, obrigadinho;
da cunha que se mete, porque sim,
à espera do favor, do favorzinho:
do muito que se faz e contrafaz
no país do vulgar tanto me faz.


© Domingos da Mota

3.11.23

Gaza - a ferro e fogo

Os vivos
não desistem
de viver
Os mortos também

Mohammed Al-As'ad


Por muito cerco cerrado
Por muitas bombas e bombas
Sobre um povo castigado
Com terríveis hecatombes
Por muito que os algozes
Com algum desembaraço
Acicatem as ferozes
Ocupações do espaço
Por muito que o ódio solte
A raiva desesperada
E a sanha de revolta
Acere o fio da espada
Por muito que a vingança
Espicace mil horrores
E o fiel da balança
Desvalorize os clamores

Por muita bomba assassina
Sobre Gaza - a ferro e fogo
Por muita carnificina
Por muito discurso torvo
Por muito que as crianças
Em vez de colo e de leite
Bebam o fel dos verdugos
E a céu aberto se deitem
Por muito pão proibido
Por muita água cortada
Por muito sangue vertido
Por tanta mulher matada
Por muito que os corpos fiquem
Sob os escombros inertes
Ou nasçam crianças mortas

Por muito que não despertes
Da cegueira selectiva
Que branqueia o morticínio
E vertas lágrimas sujas
De crocodilo à espera
Que o genocídio force
A suposta rendição:

Há um povo que resiste
À brutal ocupação

© Domingos da Mota




2.11.23

SABEDORIA DE CALÍGULA

Mandei-o descascar batatas,
respondeu-me que os astros auguravam bom tempo.
Decididamente era verdade
que o imperador fizera o seu cavalo cônsul.

1954

Jorge de Sena

Peregrinatio ad loca infecta, 70 poemas e um epílogo, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969