19.12.20

«NINGUÉM SE MEXA! MÃOS AO AR!»



«Ninguém se mexa! Mãos ao ar!» disse o histérico
e frívolo homenzinho com mais medo
da arma que empunhava que de nós.
«Mãos ao ar!», repetiu para convencer-se.

Mas ninguém se mexeu, como ele queria...
Deu-lhe então a maldade. Quase à toa,
escaqueirou o espelho biselado
que tinha as Boas-Festas da gerência

escritas a sabão. Todos baixámos,
medrosos, a cabeça. Se era um louco,
melhor deixá-lo. (O barman escondera-se
por detrás do balcão). Ali estivemos

um ror de medo, até que o rabioso
virou a arma à boca e disparou.

Alexandre O'Neill


POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Maio 2007

18.12.20

1 Árvore plantada


Árvore plantada
à beira das correntes.
Fruto na estação própria.
Folhagem que não murcha.

Feliz o homem
que tudo quanto faz em bem se torna.


Mário Castrim


Do Livro dos Salmos, Editorial Caminho, 2020

7.12.20

EINSTEIN



De um sonho de amor
às abluções,
idas à farmácia,
é um passo.
Nasceu
como todos, ao som
da respiração ritual
de sua mãe.
Este escapou
à sanha de Herodes
e à cruz (gamada),
Aos 60,
segurando o cachimbo,
nunca vi
um polegar
tão lindamente
oponível.


Sebastião Alba


Todas as noites me despeço, OPERA OMNIA - Edição, Distribuição e Comercialização de Livros, Guimarães, Setembro de 2020

4.12.20

[Com um filho no ventre]



Com um filho no ventre
E outro no colo
Cisca as ervas
Ao cebolo


Aurelino Costa


PITÕES DAS JÚNIAS Tões de Aurelino Costa com Anxo Pastor, blue book, 2.ª Edição, Porto

30.11.20

DÁ LÁ A MÃO

Herói de noites insones
coração não me abandones

neste Outono derramado
não me godas coração
dá-me lá a tua mão

coração tu não me enroles

carcaça foi que está gasta
o check-up diz que basta
tem paciência coração

não me godas não me trames
que estou preso por arames

coração dá lá a mão




                                                   1983


Fernando Assis Pacheco

A MUSA IRREGULAR, Assírio & Alvim, Novembro de 2006

22.11.20

NA PARTE DE TRÁS DO REAL

Na parte de trás do real
largo da estação de San José
vagueava acabrunhado
perto de uma fábrica de tanques
e sentei-me num banco
ao pé da guarita do agulheiro.

Uma flor jazia no feno que jazia
no asfalto da auto-estrada
- a temida flor do feno,
pensei eu. Tinha um caule
negro quebradiço e uma
corola de picos sujos
amarelados - picos longos como
os da coroa de Jesus -, e no centro
um sujo tufo de algodão
como um pincel de barba usado
guardado no meio de coisas velhas
na garage há mais de um ano.

Flor, flor amarela, e
flor da indústria também,
flor forte agreste e feia,
mas flor de qualquer modo,
com a forma da grande rosa
amarela do teu cérebro!
Esta é a que é a flor do Mundo.

       (Do volume Howl and other poems)

Allen Ginsberg


UIVO (e outros poemas), Selecção e tradução: José Palla e Carmo, Publicações Dom Quixote, 1973

18.11.20

Ruínas

Por onde quer que tenha começado,
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
e deveria talvez ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.


Manuel António Pina


COMO SE DESENHA UMA CASA, Assírio & Alvim, Outubro 2011

13.11.20

RETRATO

Quando menino encompridava rios.
Andava devagar e escuro - meio formado em
silêncio.
Queria ser a voz em que uma pedra fale.
Paisagens vadiavam no seu olho.
Seus cantos eram cheios de nascentes.
Pregava-se nas coisas quanto aromas.

Manoel de Barros


Compêndio para Uso dos Pássaros, Poesia Reunida 1937-2004, edições Quasi , Junho de 2007

9.11.20

O veneno existe ao meu lado

O veneno existe ao meu lado
diz-me que é feliz
subitamente tira a mascarilha.
Canta na sua voz rouca
o barroco ou a essência de um cometa
de infinitas mutações.

Palavras incandescentes
que deixo à guarda dos teus silêncios
logo ali lançam raízes
na primavera
florescem em mil bocas sequiosas.

Sete óvulos
passaram por este leito
tinto de sangue
e de vinho.

Mas quando a noite por fim me visita
vem exausta.

Então olho-te como a luz me olha
como uma ininterrupta jogada com o tinteiro seco
como o momento preciso
em que o espelho encontra a árvore,
perdida no labirinto.


                                                                                              Áfricas 60


Artur do Cruzeiro Seixas


Obra poética - I [Organização de Isabel Meyrelles], Porto Editora: Junho de 2020

5.11.20

CAÇA ÀS BRUXAS

Blusa de decote grande, saia
azul comprida, sandálias pretas,
anda por aqui perto, voando
de ramo para ramo com
asas incansáveis, reservando
bilhetes de comboio, assinando
um contrato, pagando contas.
Melhor deixar poemas inacabados,
interrompidos a meio, num país
onde uma mulher pode ser morta
porque um boato assim o quis.


*

WITCH HUNT


In slutty, long blue
skirt, black floaters, she's
somewhere around, flitting
from branch to branch on
quicksilver wings, booking
rail tickets, signing a lease,
paying bills. Best to leave
poems unfinished, aborted
midway, in a country
where a woman can be killed
because a rumour willed it.


Arvind Krishna Mehrotra

ASSINATURA DE  ZAYN-UL-DIN, Tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, Edição Busílis, setembro de 2020

4.11.20

VAN GOGH, MILHEIRAL COM COTOVIA

Mais do que pintor
ele queria ser poeta,

assim, ao tentar
pintar o barulho

da cotovia a ascender
direita ao céu

sobre o milheiral,
Van Gogh pintou a cotovia.


*


VAN GOGH, CORNFIELD WITH LARK


He wanted to be a poet,
more than a painter,

so when van Gogh tried
to paint the sound

of the lark as it ascended
into the sky

above the cornfield,
he painted the lark.


J. R. Solonche

UM PEQUENO LIVRO AZUL, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, Edição Busílis, outubro 2020

28.10.20

MOVIMENTO

Viajo para fora do meu corpo, e dentro de mim há continentes
que não conheço. O meu corpo
é um eterno movimento no exterior de si.
Não pergunto: De onde? Ou onde estavas? Pergunto, para
                                                                     [onde vou?
A areia olha-me e transforma-me em areia,
e a água olha-me e irmana-me com ela.

Na verdade, não há nada para obscurecer a não ser a memória.

Adonis


O Arco-Íris do Instante - Antologia Poética, Introdução, selecção e tradução de Nuno Júdice, Publicações Dom Quixote, Outubro de 2016

26.10.20

[Fogacho]

Pediu-me lume e acendeu a noite: rumor ardente.

Ricardo Álvaro


de TRÊS HAIKUS IRREGULARES


Telhados de Vidro, N.º 23 . Novembro. 2018, Editora Averno, Lisboa

23.10.20

[As pessoas]

As pessoas
e as fotografias das pessoas
envelhecem de forma diferente.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues


Turquesa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, dezembro de 2019

22.10.20

Instruções para engolir a fúria

Na
hipótese de precisares de engolir a fúria
utiliza um copo esquinado no qual
(acidentalmente)
possas dilacerar o lábio. Não te ocorra rejeitar
a primeira água da torneira essa
que habitualmente vem
turva e
enferrujada. Coloca uma dose de raiva (ou
outro genérico da fúria)
na parte
posterior da garganta
aí mesmo onde pressintas maior
desconforto ao
engolir. Reconhece (ainda quente) a cólera
(o globo
da náusea) e deglute de uma só vez
sangue ferrugem e ira até
te subir à boca alguma invectiva impoluta
(por exemplo:)
«Filhos da puta!»

João Luís Barreto Guimarães


movimento, Quetzal Editores, Lisboa,  Outubro de 2020




19.10.20

FORMA, SÓ FORMA

Brincarei ainda na infância
lembrando-me agora?
E que recordação
me pensa a esta hora?

O que sou passou
pela minha existência,
tenho uma presença
mas já lá não estou:

sou também lembrança
de alguém em algum sítio,
onde não alcança
o que, lembrado, sinto.

E aí repousa
tornado esquecimento
um dia que virá
há muito, muito tempo.

Manuel António Pina


POESIA REUNIDA (1974-2001), Assírio & Alvim, 2001

18.10.20

tenho um cacto para cuidar

tenho um cacto para cuidar
regá-lo de duas em duas semanas, dar-lhe sol
ser-lhe deserto.


Helder Magalhães


Nunca estiveste aqui, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Julho de 2020

17.10.20

[Digo amanhã]

Digo amanhã
como se tivesse a certeza de que amanhã estou vivo




Pode ser esta a hora
de um prodígio
ou de uma sombra funesta


António Ramos Rosa


Em torno do imponderável, Editora Licorne, Outubro de MMXII

16.10.20

[pássaros novos como maçãs verdes]

pássaros novos como maçãs verdes
desconhecem ainda
a primitiva arte do silêncio.
outra mulher que vem de maio
diz: a crueldade dos gatos por estes dias
é pouco menos que infinita.


Francisco Duarte Mangas


primavera audaz cheia de devir, Edições Húmus, Setembro de 2020, Vila Nova de Famalicão

10.10.20

[Esta música, ouves?]



Esta música, ouves?

sabe que
quando nos separamos

- tu seguras uma ponta,
eu seguro outra -

as coisas do mundo
tocam o cordel
da nossa distância.

Vasco Gato


Um Passo Sobre a Terra, fotografias de Vitorino Coragem, Língua Morta, Setembro de 2018

1.10.20

[Que não seja contemplado com o prémio]

Que não seja contemplado com o prémio,
que jamais saia da tômbola,
devidamente ordenado e cantado,
o três oito e setenta e cinco
que o meu avô e antes o pai dele compravam
numa tabacaria ao Largo de São Paulo
e jamais lhes saiu. E à cautela
tapo os olhos com a cautela. E peço
que saia outro número, a outro
o número certo, nem à terminação aspiro.
E que me perdoe os pecados.
Agora e na hora da minha sorte.


José Ricardo Nunes


TRÊS OITO E SETENTA E CINCO (2007-2013), Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2015

27.9.20

a questão das indulgências

nada mais triste do que os factos os factos sabemo-los
não os recordamos

castanhas, nozes, avelãs, amêndoas, faias
maçãs, peras, uvas
lagartas, aranhas, sardões
cães, gatos, coelhos
mas não morcegos ou traças
murmuram:
quando aquela estrela vermelha se fizer azul...

algumas coisas são extremamente importantes
outras nem por isso
e assim vamos seguindo
como se a vida estivesse arrumada e só fosse preciso vivê-la

Rosa Oliveira


Errático, Edições Tinta-da-China, Lda., Agosto de 2020

13.9.20

[Turva hora onde]

Turva hora onde
Principia a noite
E o dia se esconde.

Hora de abandonos
Em que a gente esquece
Aquilo que somos
E o tempo adormece.

Nevoenta hora,
Hora de ninguém
Em que a gente chora
Não sabe por quem.

E tudo se esconde
Nessa hora onde
Por estranha magia
Brilha o sol de noite
E o luar de dia.

Natália Correia


Natália Correia, Antologia  Poética [in Rio de Nuvens], Organização, prefácio e nota biográfica de Fernando Pinto do Amaral, Publicações Dom Quixote, Julho de 2002

6.9.20

O DO AMOR

Espaço sem portas, sem estradas, o do amor.
O primeiro desejo dos amantes
é serem velhos amantes.
E começarem assim
o amor pelo fim.

Regina Guimarães


ANTES DE MAIS E DEPOIS DE TUDO, poemas escolhidos, Selecção e posfácio de Rui Manuel Amaral, Editora Exclamação, Lda., Julho de 2020

1.9.20

Livro dos Nomes

Agora
escrevo um diário.
Precisava de um lugar
para catalogar as memórias
que devoram o miocárdio.
Um almanaque de venenos,
e relíquias com dentes.

Nuno F. Silva

Epilepsy Dance, DEBOUT SUR L'OEUF, Figueira da Foz, 2020

30.8.20

«UMA CHAMA NÃO CHAMA A MESMA CHAMA...»

uma chama não chama a mesma chama
há uma outra chama que se chama
em cada chama que chama pela chama
que a chama no chamar se incendeia

um nome não nome o mesmo nome
um outro nome nome que nomeia
em cada nome o meio pelo nome
que o nome no nome se incendeia

uma chama um nome a mesma chama
há um outro nome que se chama
em cada nome o chama pelo nome
que a chama no nome se incendeia

um nome uma chama o mesmo nome
há uma outra chama que nomeia
em cada chama o nome que se chama
o nome que na chama se incendeia

                             (Versus-in-Versus)

E. M. de Melo e Castro

LÍRICAS PORTUGUESAS, 4.ª Série, Selecção, prefácio e notas de António Ramos Rosa, Portugália Editora, Lisboa, Outubro de 1969

22.8.20

Mais nada

No início
queres mudar
o mundo,
conformas-te
com deixar  de fumar
no final.

Mais nada.

Tão cómico assim
e tão trágico.

*

No hay más
Al principio/ quieres cambiar/ el mundo,/ y al final/ te conformas/ com dejar el tabaco.// No hay más.// Así de cómico,/ y así de trágico.

Karmelo C. Iribarren

Estas coisa acontecem sempre de repente, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, edição do lado esquerdo, Coimbra, Setembro de 2019

21.8.20

UMA LISBOA REMANCHADA

APROVEITANDO UMA ABERTA

«Ó virgens que passais ao sol-poente»
com esses filhos-família,
pensai, primeiro, na mobília,
que é mais prudente.

Sim, que essa qualidade,
tão bem reconstituída,
nem sempre, revirgens, há-de
proporcionar-vos a vida

que levais.
Se um tolo nunca vem só,
quando não vem, não vem mais
ou vem, digamos, por dó...

E o dó dói como um soco,
até mesmo quando parte
de um tolo que a vossa arte
promoveu de tolo a louco.

Eu quando digo mobília,
digo lar, digo família
e aquela espiada fresta,
aberta, patente, honesta,

retrato oval da virtude,
consoladora do triste,
remanso, beatitude
para o colérico em riste.

Assim, sim, virgens sensatas!
(Nos telhados só as gatas...)
Pensai antes na mobília,
honestas mães de família,
e aceitai respeitos mil
do vosso
              Alexandre O'Neill!

Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS [Poemas com Endereço]  Assírio & Alvim, Maio de 2007

20.8.20

... é do tempo que falamos

... é do tempo que falamos
quando o céu está ausente
- o tempo -
Grifo e Serpente.

Quando ele passa
usamos esta água que
lucidíssima
te abraça.

                                                      Áfricas 61

Artur do Cruzeiro Seixas

Obra poética - I Organização de Isabel Meyrelles, Porto Editora, Junho de 2020

17.8.20

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummod de Andrade

Antologia Poética, Publicações Dom Quixote, 2015

16.8.20

A LEÃO XIII

Ó Padre Santo! Meu Irmão! Ó meu amigo
Do velho mundo antigo
- Dá-me consolação, e prova-me que há Deus;
Resolve-me a equação estrelada dos céus;
Admite-me ao Conselho amigo dos Cardeais:
Deixa-me ler, também, na letra dos missais!
Muito que te contar! Não conheces o mundo?
Nunca desceste, Padre!, a esse poço profundo?
Metido nessa cela ideal do Vaticano,
Há quanto tempo tu não vês o Oceano?
Nunca viste um boldel! Sabes o que é a desgraça?
Ouviste, acaso, o "pschut"! delas, a quem passa?
Sabes que existem, dize, as casas de penhores?
No teu palácio, há, porventura, amores?
Viste passar, acaso um bêbado, na rua?
Já viste o efeito que na lama imprime a lua?
Ouve: tiveste já torturas de dinheiro?
Já viste um brigue no mar? Já viste um marinheiro?
Que ideia fazes tu das crenças do rapazes?
Já viste alguém novo, Padre? Que ideia fazes,
Santo Leão!, do Boulevard dos italianos?
Recordas com saudade os teus vinte e três anos?
Ó Leão XIII! Ó Poeta, essa é a minha idade!
Como tu vês, estou na flor da mocidade!,
Ainda não contei metade de cinquenta.
Começa-me a nascer a barba, o mundo tenta
A minha alma: ah, como é lindo esse Demónio!
Nasci em Portugal! Chamo-me António;
Tenho sido um infeliz...
Um vento de desgraça atirou-me a Paris.
Em pequenino, Padre, ajoelhado na cama,
A erguer as mãos a Deus, ensinou-me a minha ama;
Sabia de cor mil e trezentas orações,
Mas tudo esqueci no mundo aos trambolhões...
Nossa Senhora te dirá se isto é assim!

- O que há-de ser de mim?

António Nobre

ANTOLOGIA PESSOAL DA POESIA PORTUGUESA, EUGÉNIO DE ANDRADE, Campo das Letras - Editores, S.A., 1999

15.8.20

MONÓLOGO DE UM CRENTE EM CRISE DE LUCIDEZ

Senhor, nós que tivemos
carros velozes,
comprados aos teutões do rio Meno;

nós, os nautas, que andámos
a cavalgar a luz em gigabites
nos ecrãs fabricados
pelos netos de Mao Tse-Tung;

nós, os sem estatuto,
que deixámos a Great Corporation
fingir facilitar-nos
em prestações suaves
a casa que comprámos
com o nosso trabalho de trinta anos;

nós, que nos apurámos
em civilizações contínuas
e vimos o rosto à mais pequena célula,
e traçámos estradas no Universo,
medindo a chegada aos astros
em milhões de anos-luz,
matematicamente certa,
hipoteticamente possível no futuro,
para nossa alegria e glória humana,

nós dizemos, Senhor,

são íngremes os teus caminhos,
pois devoraste quanto amealhámos
e fizeste-nos servos sem Espártaco,
e  deste a água, o vento, povos e países
à Great Corporation,
e entregaste-lhe o nosso sangue
e as ervas que apurámos contra a morte,
e preparas agora as trevas
em dias finais de sol,

responde, deveremos escutar
a pregação de Paulo
ou a palavra secreta  do teu filho
que os zelotas baniram?

Nuno Dempster

VARIAÇÕES DA PERDA, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Junho de 2020

13.8.20

O GALO CANTOU TRÊS VEZES

O galo cantou três vezes
e ninguém me negou.

Cristo não sofreu um enxovalho assim.
Ele tinha Pedro, um grande negador,
não precisou de passar por esta coisa chata
de ninguém nos negar, mesmo tendo o galo
cantado três vezes.

Enfim, c'est la vie. Mas cante o galo
ainda uma quarta ou quinta vez,
que eu - que remédio - lá me irei negando
pelos meus próprios meios.

Que os tempos não vão para exigências
e em tempo de espingardas
não se limpam guerras.

A. M. Pires Cabral

Frentes de Fogo, Edições Tinta-da-China, Lda., Novembro de 2019

12.8.20

FACTO

Tenho aprendido muito convosco, ó amigos homens,
a gostar de aventuras e, sobretudo,
mulheres ao alto, ao lado, ao fundo
e, adormecido, sonhar fora do mundo.

7/12/76

Ruy Cinatti

56 Poemas, Relógio D'Água, 1992

10.8.20

PROVÉRBIO

A noite é a nossa dádiva de sol aos que vivem do outro lado da Terra.

Carlos de Oliveira

A Leve Têmpera do Vento, Antologia Poética, Selecção e nota de João Pedro Mésseder, Quasi Edições, Novembro de 2001

9.8.20

homenagem a cesário verde

Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!

Mário Cesariny

Pena Capital, Assírio & Alvim, Março, 1999

8.8.20

POEMA DO BURGUÊS NA PRAIA

Há mãos de mãe sobre a seara
que às três da tarde ondula no seu gesto
Já tudo tem um rosto
e o amor de que ele gasta resto

O mar faz-lhe lembrar um cego horizontal
de olhar embaciado

Veio de lisboa para o seu passado
está de acordo com tudo

Ruy Belo

TODOS OS POEMAS I, Assírio & Alvim, Outubro 2004

6.8.20

PALAVRAS

Nenhum ramo
é seguro. Frágeis
são as palavras.

Albano Martins

O MESMO NOME, Campo das Letras, Editores, S. A. - Porto, Outubro de 1996

2.8.20

EM VENDO A CORJA TOMAR O FREIO

Em vendo a corja tomar o freio
Vender o jogo, coitadinha
Sinto vontade de ir em passeio
Ir à vidinha

Não é cordato ser pessimista
Quem não se lembra dos galarós?
Esta tendência para ser fadista
Vem d'outros tempos, d'outros avós

Tu Nicolau Tolentino sabes
Quantos peraltas são já ministros?
Quantos mendigos chegam a frades?
Quantos são Cristos?

Isto do tempo de antena é moda
Que vem do fundo da tradição
Quando o tirano de Santa Comba
Fazia tudo pela Nação

E as calinadas do Pai Tomás
Dignificando o Pátrio idioma?
Meus rapazinhos, quem é capaz?
Quem faz a soma?

Este chulismo de quintarola
Esta viagem p'rà CÊÉÉ
E o populacho todo pachola
Olarilolé

Muitos mais chulos nos vão rondando
Vai sendo tempo qu'rido zarolho
Pega no arrocho de quando em quando
Prepara o molho

José Afonso

Textos e canções, Organização: Elfriede Engelmayer, 3.ª edição revista, Relógio D'Água Editores, Outubro de 2000.

1.8.20

BALADA DAS MULHERES NO RIO

À memória de Jorge de Sena


As mulheres lavam no rio
o lixo quotidiano
e, às vezes, salta um peixe
da roupa ou um oceano

onde elas flutuam
como nenúfares cinzentos,
onde são só vegetal
vivência sem desespero,

onde são manhãs ou noites
ou nenhum tempo sequer,
onde são serenas coisas
ou nada se se quiser.

António Rebordão Navarro

[Longínquas Romãs e Alguns Animais Humildes, Ed. Asa] O POVO, MEU POEMA TE ATRAVESSA, Antologia poética de língua portuguesa nos cem anos da revolução de outubro, Selecção e prefácio, Francisco Duarte Mangas, Modo de Ler - Centro Literário Marinho, Lda., Porto

20.7.20

CIDADE NO VERÃO

A cidade é igual a uma casa
com os quartos abertos ao calor
do meio-dia, cada corredor
conduz ao mar em brasa, ruas praças
que no ar como salas a luz traça

Gastão Cruz

A MOEDA DO TEMPO [Nós o Mundo], Assírio & Alvim, Outubro 2006

4.7.20

FACA

De gume muito fino
tira a casca aos frutos sem arranhar
e adormece a dor ao cortá-los
em pedacinhos

podes comê-los sem remorsos

Paulo Moreira Lopes

GAZETA DE POESIA INÉDITA

1.7.20

SONETO

Rudes e breves as palavras pesam
mais do que as lajes ou a vida, tanto,
que levantar a torre do meu canto
é recriar o mundo pedra a pedra;
mina obscura e insondável, quis
acender-te o granito das estrelas
e nestes versos repetir com elas
o milagre das velhas pederneiras;
mas as pedras do fogo transformei-as
nas lousas cegas, áridas, da morte,
o dicionário que me coube em sorte
folheei-o ao rumor do sofrimento:
ó palavras de ferro, ainda sonho
dar-vos a leve têmpera do vento.

Carlos de Oliveira

A Leve Têmpera do Vento, Antologia Poética, Selecção e nota de João Pedro Mésseder, edições Quasi, Novembro de 2001

27.6.20

TEORIA DO CONHECIMENTO

Quanto tempo é necessário
para perceber que se errou
a vida e não é a vida
que está errada? Quanto mais

para aceitar que isso
é o mínimo que se partilha
com amigos e vizinhos,
com estranhos e gente

de maior valia, que também
vai empurrando com brio
tal certeza para a cova?

José Alberto Oliveira

Rectificação da Linha Geral, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2020

24.6.20

[A memória da tangerina]

A memória da tangerina
fica-nos cravada nas unhas

Francisco Duarte Mangas, Paulo Moreira Lopes

pequena lua cheia de sol, edições Eufeme/Sérgio Ninguém, Leça da Palmeira - Portugal, 2020

21.6.20

NINGUÉM NOS DIZ COMO

Ninguém nos diz como
voltar a cara contra a parede
e
morrer simplesmente
assim como o fizeram o gato
ou o cachorro da casa
ou o elefante
que tomou o rumo
da sua agonia
no passo solto de quem sabe
a cerimónia improrrogável,
acenando as orelhas
ao compasso da sua tromba;
só no reino animal
se contam os exemplos de tal
comportamento,
mudar o passo
aproximar-se
farejar o já vivido
e virar as costas
simplesmente
virar as costas

Blanca Varela

António Cabrita, As Causas Perdidas. Antologia de Poesia Hispano-Americana, Maldoror, Lisboa, 2019

19.6.20

O POEMA ENSINA A CAIR

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge

poesia 1960-1989, organização e prefácio Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, Setembro 2001




11.6.20

(Dincas, Sudão)

No tempo em que Deus criou todas as coisas,
criou o sol,
e o sol nasce, e morre, e volta a nascer;
criou a lua,
e a lua nasce, e morre, e volta a nascer;
criou as estrelas,
e as estrelas nascem, e morrem, e voltam a nascer;
criou o homem,
e o homem nasce, e morre, e não volta a nascer.

Herberto Helder

AS MAGIAS ALGUNS EXEMPLOS poemas mudados para português, Assírio & Alvim, Outubro 2010

10.6.20

[Que me quereis, perpétuas saudades?]

Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
E se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos!, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos para um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado
Que quase é outra cousa; porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.

Luís de Camões

Sonetos de Luís de Camões escolhidos por Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim, Julho 2000

2.6.20

O GARFO, ANDRÉ KERTÉSZ

No espaço de uma vida
há memórias
às quais permanecemos
mais fiéis.
Vejamos: este garfo
apenas pousado na borda de
um prato vazio lembra
o gesto reparador da mãe
quando chegavas a casa.
Lembra o repouso do guerreiro
a palavra do filósofo
o silêncio do pastor.

Jorge Gomes Miranda

O Caçador de Tempestades, &etc, Abril de 2004

1.6.20

QUADRA

A erudita fala dos poemas lentos
A escura idade dos olhares perversos
A clara noite dos santos eruditos
O eco obscuro dos preclaros versos

Armando Silva Carvalho

SOL A SOL, Assírio & Alvim, Lisboa, Março 2005

25.5.20

Tem coroa

Aparenta ser um rei,
tem coroa, é Corona,
mas de que reino não sei,
o vírus que reis destrona

e que infecta presidentes,
soldados e generais,
e com o freio nos dentes
trata todos como iguais,

pobres, ricos, poderosos,
ignorantes e cultos,
previdentes, desastrosos
idiotas resolutos

que com grande impertinência
mandam postas de pescada
e dizem, com insistência,
que o vírus não vale nada.

Fosse um novo cão de fila
que ferrasse o inimigo,
mas ameaça, à má-fila,
qualquer um: eis o perigo!

© Domingos da Mota

20.5.20

EGOÍSMO

Que me importa
amor
que seja dia
ou que seja a noite iluminada

Que me importa
amor
que seja a chuva
ou um novelo de paz a madrugada

Que me importa
amor
que seja o vento
ou a flor o fogo mais aceso

Que me importa
amor
que seja a raiva

Que me importa
amor
que seja o medo

Maria Teresa Horta

MINHA SENHORA DE MIM, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Abril de 1971

PARA FAZER UMA PRADARIA

Para fazer uma pradaria
É preciso um trevo e uma abelha
Uma abelha e um trevo
E fantasia
A fantasia se a houver
fará
O que a abelha não fizer

Emily Dickinson

Tradução de Jorge Sousa Braga

 Emily Dickinson (1830-1886), USA, in Facebook, página de Jorge Sousa Braga, 16 de maio de 2020, às 18:53

18.5.20

AVISOS

É proibido rezar, espirrar
Cuspir, elogiar, ajoelhar-se
Venerar, uivar, expectorar.

Neste recinto é proibido dormir
Inocular, falar, excomungar
Harmonizar, fugir, interceptar.

É estritamente proibido correr.

É proibido fumar e fornicar.

Nicanor Parrra

ACHO QUE VOU MORRER DE POESIA [de Obra Gruesa (1969)], Selecção, tradução, prólogo e notas Miguel Filipe Mochila, Língua Morta, Outubro de 2019

12.5.20

Descalço

Só o descalço deixa marcas no caminho.
De lés a lés percorre a cidade, e ninguém o vê.
A todo o instante atravessa o medo, e ninguém o segue.
Em cada esquina estende a mão, e ninguém o louva.
Só o descalço deixa marcas no caminho.

Só o descalço deixa marcas no caminho.
Diante do sol inventa a manhã, e ninguém o ajuda.
À sombra da árvore abraça a tarde, e ninguém o entende.
Sem eira nem beira edifica a cidade, e ninguém o copia.
Só o descalço deixa marcas no caminho.

Só o descalço deixa marcas no caminho.
Até à loucura conhece as pedras, e ninguém o escuta.
À volta da cidade desdobra o canto, e ninguém o acolhe.
No fundo da noite rasga uma ferida, e veste-se de luz.
Só o descalço deixa marcas no caminho.

Mário Cláudio

Doze Mapas: Poesia Reunida, 1969-2019, prefácio António Carlos Cortez, Edição Glaciar, Lisboa, Outubro de 2019

10.5.20

MULHERES E ÁRVORES

Quando as árvores começam a vestir-se
as mulheres começam a despir-se
Quando as árvores começam a despir-se
as mulheres começam a vestir-se

Jorge Sousa Braga

A Matéria Escura e Outros Poemas, Assírio & Alvim, Porto Editora, Março  de 2020

9.5.20

Outras Viagens

*

aproxima-te do fundo. Da enxada a bater na pedra.
Ou da lama pastosa onde se enterram os pés.
No que não encontrares estará a verdade:
quanto mais fundo, mais nada: uma descida completa.
O fundo é o sítio que os mortos não frequentam com a sua
exactidão.
É a exactidão de um sítio.
Um sítio exacto nem os mortos acolhe.

Rui Nunes

Nocturno Europeu, Relógio D'Água Editores, Novembro de 2014

7.5.20

[Nem uso relógio]

Nem uso relógio.
Há tanta forma de contar o tempo:
Um cigarro dura
cinco minutos,
uma noite de sono oito
horas,
um amor,
um amor,
uma vida,
uma vida.

André Tecedeiro

O Boletim da Pauta, Edição/transcrição: Hélder Teixeira, Abril 2020 #5

3.5.20

ANTÍGONA

Dirão talvez que a
morte não recusa a indulgência.
Às vezes apetece desistir a
meio da corrida
e entregar o corpo à tempestade.

Outros se levantam na vertente declivosa.
De novo se levantam sem
contar as sílabas,
sem medir o lucro.

A cerveja, a juventude, as esplanadas,
o amor: podia
ser tudo tão simples.

José Carlos Barros

O Uso dos Venenos, Língua Morta, Outubro de 2018

1.5.20

Primeiro de Maio

    Tanta bandeira
     vermelha

     Teresa Horta


Tanta bandeira
vermelha
tanto sol
quanta alegria
tanta gente
nova e velha

ombro a ombro
de mãos dadas
rua afora
neste dia.
Fosse agora
como outrora

maré alta
um mar de gente:
tanta bandeira
vermelha
a drapejar
livremente.



© Domingos da Mota

29.4.20

NO MESMO LUGAR

(1929)


Casas, cafés e bairro que me rodeais;
que vejo e por onde, há anos e anos, me passeio.

Criei-vos na alegria e nos pesares:
com tantas circunstâncias, com tantas coisas.

E sois-me agora sensação pura e inteira.

Konstantinos Kaváfis

KONSTANTINOS KAVÁFIS 145 POEMAS, Tradução e apresentação de Manuel Resende, FLOP, Outubro de 2017

25.4.20

«QUEM A TEM...»

Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade.
É quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Jorge de Sena

ÀS VEZES SÃO PRECISAS RIMAS DESTAS MANCHMAL BRAUCHT MAN SOLCHE REIME/POESIA POLÍTICA PORTUGUESA E DE EXPRESSÃO ALEMÃ POLITISCHE POESIE IN PORTUGAL UND IM DEUTSCHSPRACHIGEN RAUM (1914-2014) [Obras de Jorge de Sena, Poesia II, Edições 70, Lisboa 1988], Org. Goethe-Institut Portugal, Selecção de Poemas Joachim Sartorius, Fernando J. B. Martinho, João Barrento, Helena Topa, Tinta-da-China edições, Agosto de 2017

20.4.20

Mundo

MUNDO
a tactear-te: interroga
os seus pontos duros,

a amêndoa cercada de pregos: junto dele
assegura-te
que voltas a ti, pelas tuas
margens sensíveis à luz.


Paul Celan

A Morte É Uma Flor, Poemas do Espólio, Tradução, posfácio e notas de João Barrento, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1998


19.4.20

[Uma paralela gritou-lhe de longe:]

Uma paralela gritou-lhe de longe:
Não nos podemos encontrar.
Não quero que nos confundam.

Francisco José Craveiro de Carvalho

As sapatilhas de Usain Bolt e outros tercetos, Companhia das Ilhas, Junho de 2015

12.4.20

PÁSSARO EM QUEDA NUM LUGAR SAGRADO

Naqueles dias
vimos o pássaro em queda
num lugar sagrado
Voou com asas todas brancas
e uma cauda como leque de sol
Vimos o remoto relâmpago
o susto do baque
nos vidros mais comuns
a morte, ilusão de transparências
Abandonou outras imagens
idênticas asas perdidas
a glória fulminada
o risco do sangue

E vimos a inspiração do quadro
os homens e as mulheres
num canto do mundo
respirando a luz
como se fosse o silêncio inteiro
Contemplavam depois a própria cegueira
prisioneiros de um pó dourado
com os pés enleados em raízes
do mesmo vermelho vivo

Ficava ao largo
o sacro pescador
absorto na troca das marés
um sifão turvo de peixes
espelhos de espelhos
Prende nas suas redes
o ar da tempestade
lança-as sobre o vazio
o mais submerso mar

José Manuel Teixeira da Silva

Música de Anónimo [poesia, 2001-2009], Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Janeiro de 2015

7.4.20

[A flor tem linguagem de que a sua semente não fala]

A flor tem linguagem de que a sua semente não fala.
A raiz não parece dar aquele fruto.
Não parece que a flor e a semente sejam da mesma linguagem.
Retirada a linguagem
a semente é igual a flor
a flor igual a fruto
fruto igual a semente
destino igual a devir.
E era o que se pedia: igual.

José de Almada Negreiros

Poemas Escolhidos, Assírio & Alvim, Novembro de 2016

O AR APENAS

Donde
te vem
o sono
carne
de febre
ainda
não contida
febre
funesta
que ultrapassa
o som
avião vivo
que voa
sob
o peito
das aves
que no vento
dispersam
todo
o pranto?
O ar
apenas
rarefaz
as lágrimas
bebe
o ácido
feroz
que nem
as nuvens
vivas
o algodão
das penas
retém
no tempo
na rigidez
dum corpo.

Armando da Silva Carvalho

OS OVOS D'OIRO, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969

4.4.20

[Fosse corvo, melro, pomba]

Fosse corvo, melro, pomba,
fosse milhafre ou gaivota,
fosse abetarda ou a sombra

de uma ave ignota,
fosse um abutre, um pardal,
um falcão, uma andorinha,

fosse uma erva daninha,
mas é um vírus -
letal.


© Domingos da Mota

3.4.20

O MEDO

Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca de elas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.

É a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
As minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.

Serei capaz
de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas?

Manuel António Pina

POESIA REUNIDA (1974-2001), Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro 2001

27.3.20

Provérbios e Cantares

XLIV

   Tudo passa e tudo fica;
mas nossa vida é passar,
passar fazendo caminhos,
uns caminhos sobre o mar.

*

Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre la mar.

António Machado

Antologia Poética, [Campos de Castela], Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, segunda edição revista e aumentada, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1999

13.3.20

[Não abriu a porta ao medo]

Não abriu a porta ao medo
que tocou à campainha.
Teve medo de que o medo
lhe transmitisse ao que vinha.

© Domingos da Mota

26.2.20

A NOITE NOS ACENDE MOVIMENTOS

A noite nos acende movimentos
luminosos. E ampla se diria
ou paz, se não mover-nos
abrisse dentro da brisa.
Mas mesmo que o silêncio
nos alongue a memória e as axilas
respirem o que vemos,
a custo vemos crescerem às pupilas
os vasos de irem vendo
a inclinação das coisas esquecidas.

Fernando Echevarría

POESIA, 1956-1979, Edições Afrontamento, 1989

23.2.20

PAPOILAS

                                             A Izet Sarajlic


Sobre o antigo campo de batalha
onde morreram milhares de rapazes
volta a crescer o trigo, salpicado
aqui e ali por ardentes papoilas.

E dois apaixonados, que terão
mais ou menos a idade dos soldados
que então aqui morreram,
fazem hoje amor entre as searas.

Derrubam o trigo. Esmagam as papoilas.


*

AMAPOLAS

                                                 A Izet Sarajlic


Sobre el antiguo campo de batalla
donde murieron miles de muchachos
vuelve a crecer el trigo, salpicado
aquí y allá de ardientes amapolas.

Y dos enamorados, que tendrán
más o menos la edad de los soldados
que aquí entonces murieron,
hoy hacen el amor en el sembrado.

Tumban el trigo. Aplastan amapolas.

Juan Vicente Piqueras

Instruções para Atravessar o Desertopoemas escolhidos, tradução João Duarte Rodrigues e Manuel Alberto Valente, Porto Editora, Fevereiro de 2019

22.2.20

Pelo sim pelo não

Retiro o que não disse.
Não vá o diabo dizê-las.

Paulo José Borges

Um ócio todo estendido, Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Dezembro de 2019

20.2.20

SE BEM QUE SEJA OUTONO

Se bem que seja outono
e véspera d'inverno,
eu canto a primavera,
nela o meu estro ponho,

que és tu, ilimitada
tão constante presença,
o ar purificado
que sempre de ti vem.

E ali estamos ardendo
sempre desencontrados,
num benéfico espaço
com tão desiguais tempos.

António Salvado

ECOS DO TRAJECTO seguido de PASSO A PASSO, Edição Ricardo Neves Produção, Lda. - A.23 Edições, 2014

19.2.20

DESENCONTRO

Que língua estrangeira é esta
que me roça a flor do ouvido,
um vozear sem sentido
que nenhum sentido empresta?
Sussurro de vago tom,
reminiscência de esfinge,
voz que se julga, ou se finge
sentido, e é apenas som.

Contracenamos por gestos,
por sorrisos, por olhares,
rodeios protocolares,
cumprimentos indigestos,
firmes apertos de mão,
passeios de braço dado,
mas por som articulado,
por palavras, isso não.
Antes morrer atolado
na mais negra solidão.

António Gedeão

POESIAS COMPLETAS (1956-1967), Portugália Editora, Lisboa, Janeiro de 1971

10.2.20

Dado o caso

Escolhe entre os erros
que tens à tua disposição,
mas escolhe certo.
Talvez seja errado
fazer o que está certo
no momento errado,
ou esteja certo
fazer o que é errado
no momento certo?
Um passo ao lado,
impossível de corrigir.
O erro certo,
uma vez desaproveitado,
não é fácil que volte a surgir.

*

Gegebenenfalls

Wähle unter den Fehlern,
die dir gegeben sind,
aber wähle richtig.
Vielleicht ist es falsch,
das Richtige
im falschen Moment
zu tun, oder richtig,
das Falsche
im richtigen Augenblick?
Ein Schritt daneben,
nicht  wieder gut zu machen.
Der richtige Fehler,
einmal versäumt,
kehrt nicht so leicht wieder.

Hans Magnus Enzensberger

66 poemas escolhidos e traduzidos por Alberto Pimenta, edições do Saguão, Outubro de 2019

8.2.20

GOMES LEAL, II

(Grito de Gomes Leal no céu:)

"Cansado de dormir no basalto,
morri e meteram-me numa nuvem de elevador.
E agora cá estou no céu alto
com uma estrela ao peito em vez de flor.

Mas qualquer dia dou um salto.
(Ou peço a um anjo que me transporte
para não quebrar as pernas.)

Estou farto de céu e quero mundo! Quero morte!
Quero dor! Quero tabernas!"

José Gomes Ferreira

Eugénio de Andrade, Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Campo das Letras - Editores, S. A., Porto, Novembro de 1999

2.2.20

Um mau exemplo

Nunca quis chegar a sítio algum
nem tampouco a paisagem
me interessou particularmente.

Um pequeno bar de bairro
com uma mesa
de onde ver o mundo apagar
e acender
- debaixo de chuva -
as luzes nos passeios,
chegou-me para ser quase feliz.

Exilado dentro de mim,
nunca à venda
nem a beijar a mão a ninguém,
arrasto a minha epopeia minúscula
- por umas ruas
que nem sequer são já as minhas ruas -
e vou-me afastando.

*


Un mal ejemplo
Nunca quise llegar a ningún sitio/ ni tampoco me interesó/ especialmente
el paisaje.// Un pequeño bar de barrio/ con una mesa/ desde la que ver
el mundo apagarse/ y encenderse/ - bajo la lluvia -/las farolas en las
aceras,/ me ha bastado para ser casi feliz,// Exiliado en mi interior,/ nunca
en venta/ ni besando la mano de nadie,/ arrastro mi minúscula épica/
- por unas calles/ que ni siquiera son ya mis calles -/ y me voy alejando.

Karmelo C. Iribarren

Estas coisas acontecem sempre de repente, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, edição do lado esquerdo, Coimbra, Setembro de 2019

29.1.20

SEM TÍTULO

Um lago de luz negra sorveu-te os olhos
Com eles te arrastando e todo o peso do mundo
Cai na mesa onde estás deitado.
Só um vago sorriso ficou de fora
E é só de dentro que nos falas.

O tempo, enfim, deixou-te em paz,
Selou-te o coração com a última rubrica
Mas vem limpar em nós a sua faca.

Manuel Resende

Poesia reunida, Posfácio de Osvaldo M. Silvestre, Edições Cotovia, Lda., Abril, 2018

19.1.20

QUE TRABALHO

Que trabalho exasperado, o da língua,
essa em que dizes com mão insegura
desvios, desacertos, desalinhos.

Eugénio de Andrade

PEQUENO FORMATO, com um retrato de Alfredo Cruz e um desenho do escultor José Rodrigues, em edição fora do mercado, numa tiragem de 250 exemplares destinada aos amigos da Fundação Eugénio de Andrade, Fevereiro de 1997

3.1.20

vita brevis

a vida breve, revele-a
a pulsação que lateja
no efémero da camélia,
ou no lustro da cereja,

é a do coração que dita
a dor que lhe sobejou
e tenta deixá-la escrita
mas não conta o que escapou

pelo espelho, quando a máscara
vai perdendo o frenesim,
e agora tanto lhe faz: para
o caso é mesmo assim,

nem há lixa ou aguarrás
que apague as marcas que traz.

Vasco Graça Moura

uma carta no inverno, Quetzal Editores, Lisboa, 1997