29.8.23

Rosa

Olhas a rosa que existe
quase oculta, junto à seiva
que dela fosse o limite
para que depois receba

os espinhos, um perfume
que se esperava, estas cores
iguais talvez ao vislumbre
de tudo o que em nós se torne

mais antigo, anterior
ao tempo de aparecer
já unida ao nosso corpo
como o perfume do ser.


Fernando Guimarães

Das Mesmas Fontes, Edições Afrontamento, Lda., Porto, Fevereiro de 2023:167

21.8.23

AOS VINDOUROS, SE OS HOUVER...

Vós que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

Alexandre O'Neill


DE OMBRO NA OMBREIRA, Publicações Dom Quixote, Setembro de 1969:75


19.8.23

Rondam morcegos

Rondam morcegos
pelos quintais,
tortuosos ademanes
de enlutada alegria.

Um silêncio côncavo
desce de um céu
inacessível
que uma réstia
de luz afunila.

Asfixiam as árvores
sob o coágulo dos frutos,
cuja requintada acidez
os pássaros debicam,
aturdidos de prazer.

Uma vertigem oblíqua
vara as águas paradas
da albufeira.

Nas vinhas,
os globos das uvas
arpoados
pelos insectos,
a gangrena
dos pirilampos,
a podridão da terra
pululante
de vermes
que as garças
degustam.

Um relento dúbio,
aviltante,
enlanguesce e supura.

E a indiferença,
como um véu,
caindo
sobre os vultos
na sombra,
tudo enleando,
tudo perfilando
na aura
aconchegante.

Uma aragem tímida
esmorece e desiste.

Imóvel na trave,
a forca esgarçada,
garrote para tanta
e tão escusada beleza.


João Moita

Que Túmulo em Que Talhão, Guerra e Paz Editores, Lda., Lisboa, 2022:17-19


13.8.23

EU NÃO FUI SEMPRE ASSIM

Eu não fui sempre assim. Eu fiquei assim
no dia em que encontrei no meu pratinho
de arroz-doce
um pêlo do bigode de Giordano Bruno.


A. M. Pires Cabral


Caderneta de Lembranças, Edições Tinta-da-china, Lda,, Novembro de 2021:143

10.8.23

SESTA

Dentro do bosque
os passos dum caçador.
Dentro da sombra
a cobra do calor.

E dentro do meu sono
outro sono maior.

Estalando as folhas secas
vai a cobra invisível.
Nas mãos do caçador
ainda a vida é plausível.

Só dentro do meu sono
toda a morte é possível.


Carlos de Oliveira

Trabalho Poético, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1998:61

9.8.23

passagem a limpo

O navio morto
que sobe a corrente
de que velho porto
era o adolescente?

Cingiam-lhe a boca
água e nevoeiro?
Tinha muita, pouca
falta de dinheiro?

Bom barco, subido
aos da mor igualha,
tens o ombro ferido
até à fornalha

E puxado a cabos
- este rei de oceanos! -
por ginasticados
loiros namorados
a diesel e canos

Foi-lhe a estrela má.
- E se recomeça?
- Vamos daqui já
enterrá-lo depressa.

Vai morto. Não sonha.
Não grita. Não soa.
Saiu-lhe a peçonha
pelo buraco da proa


Mário Cesariny

CESARINY UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores
, Assírio & Alvim, Março 2007

5.8.23

VERSOS DO POBRE CATÓLICO

Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar
e é hoje a tua festa, agora é que me lembra, ó Senhora da Assunção
Estás muito bonita; estiveram a teus pés alguns momentos
brilhantes de fervor as presidentes de importantes movimentos
Mas tens a fronte fria e dois olhos brilhantes
Estava distraído. Não te sentes feliz
se o povo reza livremente o terço no país
e são muito cristãos os nossos governantes?

Nem palavras nem coisas nem a própria distracção será bastante
para fazer passar por cima dos mais próximos devotos esse olhar
que há-de envolver o grande corpo mudo justo mas distante

Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar
e é hoje a tua festa, agora é que me lembra, ó Senhora da Assunção
Venho como um gatuno - o que rouba de frente, arrisca e puxa a faca
- depositar à superfície desse teu imenso olhar
poisado sobre os dias e os gestos e as águas na ressaca
entre aromas e fumos esta enorme incorrigível distracção
que me enche a vida o passo e o regaço e deixo finalmente [transbordar
                                                                                    
Era tudo o que tinha, era mais esta grande mágoa
de ter medo de vir, talvez por não saber nadar
no mar da piedade em que outros se comprazem


Ruy Belo

TODOS OS POEMAS I, [Tempo Duvidoso], Assírio & Alvim, 2004:208