22.12.21

CARTUCHO DE CASTANHAS

Vem da infância
e de uma cidade molhada esse cheiro
ímpar de um pequeno carro de cor neutra
envolto em fumo. Brasas
no estalido de cascas aquecendo
as nossas mãos friorentas. O sabor
macio e doce confortava
as árvores despidas. Esvaziado o cartucho
ficava no corpo a quentura
de um abraço materno
ou beijo enamorado.

Inês Lourenço

As Palavras Beijam Sem Carga Viral, Editor Câmara Municipal do Porto - Museu da Cidade, Porto, agosto de 2021

20.12.21

PANCADAS SURDAS

É obra conhecer as nossas dificuldades
articular a alma
num problema difícil de palavras-cruzadas,
umas vezes na vertical, outras na horizontal,
passando a cada passo
por uns grandes quadrados negros,
tropeçando em amigos esquecidos.
Circunspectos habitualmente
por vezes insinceros
cheios de marcas de pancadas surdas.
Perguntamos como foi
e uns dizem
que escorregaram na banheira
e outros dizem
que escorregaram na rua,
esta terra anda cheia de cascas de banana.


De Akáthistos Deipnos, 1978

Michális Ganas


MANUEL RESENDE, A GRÉCIA DE QUE FALAS..., ANTOLOGIA DE POETAS GREGOS MODERNOS, Língua Morta, Fevereiro de 2021

19.12.21

PEDRA-FINAL

Tanta gente,
tantos enredos
até ficarmos para sempre
quedos!

Para sempre? Não!
Que outros (mínimos) seres
já trabalham na nossa remoção.


Alexandre O'Neill



DE OMBRO NA OMBREIRA, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969

16.12.21

[no mês de maio pescávamos]

no mês de maio pescávamos
bogas e trutas no rio olo
água fria água limpa
impaciente a brunir os seixos
no regresso em terras de basto
bebíamos vinho
o mundo parecia outro
como se fossemos tocados
pelo sopro da imortalidade


Francisco Duarte Mangas

As coisas comuns, Modo de Ler - Cruz Santos & Fernandes Marinho, Lda., Novembro de 2021

12.12.21

O Banqueiro

Não sendo ele Pessoa
nem O Banqueiro Anarquista,
em Durban ou em Lisboa,
adios hasta la vista!


© Domingos da Mota

11.12.21

SILÊNCIO

Há momentos em que tudo o que desejo
é o silêncio e seu bálsamo. Momentos
que a própria música conspurcaria.

Mas há silêncio e silêncio. O que apeteço
não é o silêncio que alguma autoridade
decreta, seja direcção-geral, escola, igreja.

O silêncio que ambiciono há-de ser
sereno como nuvens e ervas bravas
e água em repouso e asas imóveis
de borboleta.

Há-de ser como o doce cansaço
que, depois que o vento tem passado,
fica a cintilar sobre as coisas
que o vento alvoroçou.


A. M. Pires Cabral


Caderneta de Lembranças, Edições Tinta-da-China, Lda., Lisboa, Novembro de 2021

7.12.21

O RELÓGIO

- adereço conceptual para usar no pulso -


Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.

O tempo que foi constante
no meu contratempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.

Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora


José Carlos Ary dos Santos

OBRA POÉTICA
(5.ª edição), Editorial «Avante», Lisboa, 1994

22.11.21

[No meu tempo, ah, dizer no meu]

No meu tempo, ah, dizer no meu
tempo é engraçado, havia pais
que levavam os filhos às putas.
Sei que houve gente que adorou
e outra que ficou traumatizada
para o resto da vida. O meu pai não
me levou a nenhuma coisa dessas,
mas deu-me o primeiro vinho a provar
e ensinou-me a escrever. Eu
depois inventei o resto.


Helder Moura Pereira



A GARGANTA INFLAMADA
antologia de poemas publicados na Companhia das Ilhas - 2012-2018

selecção, organização e nota prévia de José Manuel Teixeira da Silva, 
Maio de 2019

13.11.21

Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada

V


Escrever nem uma coisa
Nem outra -
A fim de dizer todas -
Ou, pelo menos, nenhumas.

Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.


Manoel de Barros


Compêndio para Uso dos Pássaros, Poesia Reunida 1937-2004, Quasi Edições, Junho de 2007

9.11.21

PALAVRAS NUNCA


Sim, posso escrever trigo,
e trémulo, e de oiro,
porém nunca uma espiga
brotará do meu verso
como brota de um sulco.
E escrever pintassilgo
e trino, porém nunca
soará nos meus versos
nenhum canto.
Nunca as nossas palavras
cativarão as coisas.
Acercar-se-ão delas,
andarão em seu torno
como uma brisa débil...
e voltarão vazias.
Com um perfume acaso,
com um eco, com uma
memória desbotada...;
porém as coisas sempre
ficarão no seu mundo
e as palavras nunca
serão mais que palavras.

27-II-1974

Miguel D'Ors





O Fiasco Perfeito, Apresentação, selecção e tradução de Luís Pedroso, Língua Morta / Poesia Incompleta, Maio de 2021

3.11.21

Epigrama

Se só de os veres
chegando satura,
imagina teres

de aguentar
de novo a tortura
da falta de ar.


© Domingos da Mota

29.10.21

neve interior

22


Foi o vício de colocar
coluna vertebral em tudo
que te mostrou a cifose do mundo.

Afinal, amo-te
não era vocábulo
mas raposa que decifrava
a geometria de um poço.

Nem Einstein
conseguiu calcular a velocidade
que habita a derrocada de Agosto.
Não te admires,
a Física nunca teve sentimentos.

O coração,
catálogo para desabar.


Alberto Pereira


neve interior, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, 2.ª Edição, 07 de Outubro de 2021

5.10.21

Fernando Echevarría (1929-2021)

Abstraído. Mas todo, corpo de si no pulso,
campeia além de si e a si estranho.
A luz, à volta, cumpre só vir do susto
de ver-se, de repente, separado
do outro corpo de jacência, mudo,
e onde ainda reinaria o espaço.
Que aqui tudo é primeiro. Ou tudo último.
Porque o tempo ficou naquele lado
em que se conta o percurso
por pontos sucessivos do seu trânsito.
Agora, somos prumo.
Vultos duríssimos durando,
com todo o corpo fora de nós. No pulso
que descobre outros em sua luz de espanto.


Fernando Echevarría

Sobre os Mortos, Edições Afrontamento, Porto, 1991

2.10.21

FICAR NA SOMBRA

Vens de tão longe
e olhamos por ti
nas ondas da noite

Esperamos desde sempre
são as primeiras
últimas coisas

Ficar na sombra
de mundo a mundo
ou arder em eclipse

O que queiram, enfim, dizer
as palavras aparecer
desaparecer, deslumbrar


José Manuel Teixeira da Silva

MÚSICA DE ANÓNIMO [poesia, 2001- 2009], Companhia das Ilhas, 2015

14.9.21

SEGREDO

       A Rosa é o órgão sexual duma planta extremamente evoluída.

                       Ana Hatherly



Nada mais havendo que te desse,
oferecia-te uma rosa
em botão amargo e verde    ainda
num caule muito longo em solitário altíssimo
e o tempo
desfolhando o segredo lento dessa rosa
abrindo-se     madura
em flor.


Rita Taborda Duarte


Roturas e Ligamentos, Ilustrações e logótipo convidado: André da Loba, edição Abysmo. Lisboa, Novembro 2015

8.9.21

VIAGEM NA GRÉCIA

Visitando esta espécie de país
Demos com um pastor à beira-estrada,
Perito das ovelhas e de nada,
Mostrando os podres dentes pastoris.

Infelizmente o sol de mau cariz
Foi que nos trouxe à erma serra parda,
Turistas enfadados de alma à banda,
Heróis com menos olhos que nariz.

Falou dos alemães, da guerra suja,
Das casas destruídas, do penar,
Da morte que com vida nos intruja.

Os figos ali, e ele a falazar!
Ele que se vá antes que o sol fuja,
Que eu quero roubar figos pró jantar!


Manuel Resende

Poesia reunida, Edições Cotovia, Lda., Abril de 2018

5.9.21

Futebol Americano

Uma reflexão sobre a Guerra do Golfo


Aleluia!
Funciona.
Rebentámos-lhes com aquela merda toda.

Rebentámos-lhes com a merda pelo cu acima
Até lhes sair pela porra das orelhas.

Funciona.
Rebentámos-lhes até com a merda.

Eles sufocaram na própria merda!

Aleluia.
O Senhor seja louvado por todas as coisas boas.

Desfizemos aquela porra toda em merda.
Estão a comê-la.

O Senhor seja louvado por todas as coisas boas.

Rebentámos-lhes os tomates em estilhaços de pó,
Na porra de estilhaços de pó.

Conseguimos.

Agora quero que venhas aqui e me beijes
     na boca.


Agosto de 1991


Harold Pinter


Guerra, Tradução de Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, Quasi edições

22.8.21

[mutações]





mutações

também tu
estás de passagem

peregrino sobre a terra
agora lagarta
ontem crisálida
amanhã borboleta


Manuel Silva-Terra



Eufeme n.º 20 magazine de poesia (Julho/Setembro 2021)

21.8.21

EM TODO O ACASO

Remancha, poeta,
Remancha e desmancha
O teu belo plano
De escrever p'la certa.

Não há «p'la certa», poeta!

Mas em todo o acaso acerta
Nem que seja a um verso por ano...


Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007

18.8.21

[Poema]

para lá da cortina além da porta errada
silencioso e só está sentado
e lê num livro velho
a sua própria história


Manuel de Castro


EDOI LELIA DOURA antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa,
organizada por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, Janeiro de 1985

15.8.21

[Não esbanjem comigo o odor da mirra,]

Não esbanjem comigo o odor da mirra,
nem ofereçam coroas de flores,
nem acendam a pira funerária,
tudo isso é desperdício; ofereçam-me
presentes, se quiserem, enquanto
estiver vivo - mas espalhar cinzas
no vinho torná-lo-á lama
e dele não beberão os mortos.

Anónimo

Poemas da Antologia Grega, versões de José Alberto Oliveira, Porto Editora, Fevereiro de 2018

13.8.21

[eles estão a morrer de todas as maneiras]

eles estão a morrer de todas as maneiras
mas diga-me: não há apenas uma só maneira:
a maneira cega?


Herberto Helder



Poemas Canhotos, Porto Editora, Maio de 2015

10.8.21

CASA

A luz de carbureto
que ferve no gasómetro do pátio
e envolve este soneto
num cheiro de laranjas com sulfato
(as asas pantanosas dos insectos
refectidas nos olhos, no olfacto,
a febre a consumir o meu retrato,
a ameaçar os tectos
da casa que também adoecia
ao contágio da lama
e enfim morria
nos alicerces como numa cama)
a pedregosa luz da poesia
que reconstrói a casa, chama a chama.


Carlos de Oliveira


SOBRE O LADO ESQUERDO, Publicações Dom Quixote, Maio de 1969

9.8.21

[queria de ti um país de bondade e de bruma]

queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma

Mário Cesariny

CESARINY UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores, Assírio & Alvim, Março 2007

6.8.21

[E me disseste: vem. E havia]

E me disseste: vem. E havia
alguns despojos sobre a areia, algumas
ressentidas grinaldas
no limiar das têmporas. Havia
alguns gestos suspensos, um cofre
de esmeraldas vermelhas, um torpor
nos membros retardados. E havia
um colar para as mãos, uma colina
para os lábios e uma flor
intacta perfumando
o silêncio, à beira
de indizíveis planícies.

Albano Martins

Uma Colina para os Lábios, Edições Afrontamento, Porto, 1983

4.8.21

GULA

De faca e garfo chegamos à pupila,
devoramos a pele delicada da lágrima.
Prometemos não sofrer,
não sentir, não ceder.
Comemos mais abaixo o coração.


Maria F. Roldão

Eufeme n.º 20 Magazine de Poesia (Julho/Setembro 2021)

1.8.21

MESTRES



VIII


Eis, pois, os Mestres, os senhores da terra
dura e impermeável, gasta e morta,
os incansáveis Mestres dos destroços,
a suja maravilha dos humanos.


Hélia Correia


Acidentes
, Relógio D'Água Editores, Novembro de 2020

29.7.21

Um vento surdo liga

Um vento surdo liga
o A e o B. É leve o alfabeto.
Do figo traz o estorninho
a polpa. Leviano universo,
mais do que leve, airado
pedestal de nula estátua.
Contudo, em um momento existem
o vento, o voo, os pontos
de partida e de chegada.
Em um momento, digo. Um só.
Depois a nova coisa ignora
outra coisa anterior. Não há.


Pedro Tamen

Memória Indescritível, Gótica, Lisboa, 2000

14.7.21

A RAPARIGA

A casa está a transbordar de alegria
Como uma bilha cheia de leite ao sol
Uma rapariga à janela ocultamente
Dá os seus seios às pombas.

Repletos palpitam os seios
Espetam-se os mamilos
Titilam-nos as aves
E subitamente o leite transborda.


                                                    De Interior, 1945


Andréas Embirikos


A GRÉCIA DE QUE FALAS... Antologia de Poetas Gregos Modernos
, de Manuel Resende, Recolha e organização de Rui Manuel Amaral, Posfácio de Tatiana Faia, Língua Morta, Fevereiro de 2021

10.7.21

ESTORVO

Podes sempre pensar que foi o comboio que se pôs debaixo de ti.

Paula Sinos



O Meu Livro de Cabeceira É Um Revólver, Dezassete Suicidas (Poetas de Língua Espanhola), Selecção e tradução de Jorge Melícias, Língua Morta, Julho de 2020

7.7.21

AO CONTRÁRIO DE NEWTON

Enchi um copo de água e pu-lo
em contraluz. Depois, devagar,
tirei o vidro de volta da água
e deitei-o fora. A água formou
um cilindro suspenso no ar,
a contraluz. Através da sua
transparência pude ver o céu,
o branco das nuvens, a linha
abstracta de um voo de ave;
e depois a própria água, limpa
de tudo o que os meus olhos
tinham visto através dela. Por
fim, sorvi devagar essa água,
como se ainda estivesse dentro
do copo; e no seu sem sabor
provei o céu, o branco das
nuvens, e o voo dessa ave que
me levou até ao horizonte,
como se a água se pudesse
tirar de dentro de um copo
e ficar suspensa.


Nuno Júdice


Nervo/11 colectivo de poesia  (maio/agosto de 2021)

5.7.21

És como uma terra

És como uma terra
que nunca ninguém disse.
Não esperas nada
a não ser a palavra
que brotará do fundo
como fruto entre os ramos.
Um vento que se aproxima.
Coisas secas e mortas
embaraçam-te e vão no vento.
Membros, palavras antigas.
Tremes no verão.


29 de Outubro de 1945

*

Tu sei come una terra
che nessuno ha mai detto.
Tu non attendi nulla
se non la parola
che sghorgherà dal fondo
come un frutto tra i rami.
C'è un vento che ti giunge.
Cose secche e rimorte
t'ingombrano e vanno nel vento.
Membra e parole antiche.
Tu tremi nell'estate.

29 ottobre 1945


Cesare Pavese

Virá a morte e terá os teus olhos, Traduções de Rui Caeiro e Rui Miguel Ribeiro. Posfácio de Rui Caeiro, edições saguão, Lisboa, Abril de 2021

3.7.21

Ó MUNDO BELO E PERDIDO!



Oh, mia patria si bella e perduta
                          VERDI, Nabucco

Ó mundo belo e perdido,
outrora vivo e garboso,
hoje, da peste mordido,
por descaso criminoso
de quem pensa fabricar 
- com fim de enriquecer
e outros aniquilar -
micróbios de estarrecer!
O mundo está hoje nas mãos
de loucos enraivecidos,
que andam pelos desvãos,
do mundo, empedernidos,
tentando acumular
montes de obscena riqueza
e aos pobres triplicar
uma já grande pobreza!
Esta gente vai à missa,
esta gente quer o céu
e nem sequer desperdiça
o mais pequeno troféu.
Querem Deus e o Dinheiro,
o gozo e o perdão;
para eles, o mundo inteiro,
para os outros, nem um pão.
Neste mundo em desconcerto,
onde infames empresários
congeminam desacertos
e bizantinos cenários,
pondo em risco o mundo inteiro,
mas enchendo as algibeiras,
- vale tudo prò embusteiro,
fértil só em bandalheiras!
Ó mundo belo e perdido,
noutro tempo tão formoso
e agora corroído,
devastado e perigoso!
Possas tu erguer-te, belo,
de novo, forte e seguro.
Possa todo este flagelo,
saindo, deixar-te puro!

24.05.2020


Eugénio Lisboa,

depois de ouvir, mais uma vez, o «Coro dos escravos», da ópera Nabucco, de
Verdi, num momento emocionante da vida italiana.

Poemas em Tempo de Peste
, Guerra e Paz, Editores, S. A., Lisboa, Setembro de 2020

 

13.6.21

Sol nulo dos dias vãos

Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!

Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!

Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguém!

Fernando Pessoa

Obra Poética [Cancioneiro], I Volume, Círculo de Leitores, 1986

1.6.21

CÃES


Cães batidos
ganindo guinando
correndo atrás dos seus latidos
como de ossos

Daniel Jonas

Cães de Chuva, Assírio & Alvim, Porto, Fevereiro de 2021

30.5.21

O poeta

a G.C
cf «Ourives-Gravador»


Procuro na linguagem (ainda)
a poesia desse ourives-gravador
o fazedor exímio dos versos onde vibra
a imagem tensa ígnea e viva

de uma arte talvez perdida
mas por ele mantida como densa
água até ao fim da existência
Procuro ao lê-lo recuperar a leveza

ou o peso da poesia livre
dos tortuosos caminhos do amor
Com o poeta tive a lição de fogo

o cristal e a chama  A pessoana dor
lida a que vale a pena projectar:
o selo de água o som crepuscular


António Carlos Cortez

skin deep
, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Março de 2021

29.5.21

POEMA QUASE INÉDITO

Ali está a casa, o cálido lume
da nossa alegria, a casa comum
sem rua e sem portas. A casa
onde entramos pesados
e adormecemos liber(a)tados.

Ali está a casa, o longo namoro
entre a chama e a fúria desejada.

A casa do universo,
da tua boca e seus saberes:
por nós aconchegados
e ao vento disseminados.

Aqui está a casa, o movimento
lento do corpo no corpo,
a imensidão fraterna e impensada...

Aí tendes a vossa casa:
e dentro dela toda a nudez
e a alegria desejada.

António Teixeira e Castro

MOROSIDADE DO FOGO, Editora Labirinto, Fafe, 2021

27.5.21

monólogo do estrangeiro

de milagres nada sei
nunca vi pão transformando-se em rosas
nunca ouvi vozes no alto da montanha
nem anjos à minha volta
tocando cítara

de milagres sei apenas o que li
em monges profetas santos
mas tudo me parecia exterior
longínquo mesmo

de milagres sei
no entanto
esta hipótese de ter podido ser nada
mas afinal todos os dias abrir os olhos

abrir os olhos e ver
árvores rios pessoas
enfim
este milagre imenso
que diariamente vou vivendo
o melhor que consigo
e sei


Victor Oliveira Mateus

uma casa no outro lado do mundo, Editora Labirinto, Fafe, 2021

18.5.21

[O hálito do Tâmega, mais intenso ao fim da tarde,]

O hálito do Tâmega, mais intenso ao fim da tarde,
nos saltos dos escalos. Uma bolinha de broa trazia o
[despique,
o convívio. Pedras achatadas saltavam na lisura da água:
o rapaz e o rio. Eu amava ver a chuva a cair sobre o rio
e os peixes vinham à tona beijar os pingos. Depois do
[açude
musical, de rendada espuma, a água parava,
escura. Teias de aranha nas covas e peixes lentos.
O guarda-rios pintava as pedras do côrrego.
O rio tinha alguns pequenos açudes que eram afinal
[murmúrios.
Só ao fim de alguns anos percebi o que ele me queria dizer.

Adelino Ínsua

Decantações, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Dezembro de 2020

11.5.21

ESTRADA DE CINZA [O vinho não existe sem veneno]

O vinho não existe sem veneno
gramática sem verbos para conjugar
na estrada de cinza


António Ferra

ESTRADA DE CINZA, Eufeme Poesia, Leça da Palmeira, Abril de 2021

5.5.21

DADOS RECENTES

Os dados mais recentes apontam no sentido
De uma fatalidade
Inverosímil,
Irreversível.

José Pascoal

BRANZA, Editorial Minerva, Lisboa, Agosto de 2019

2.5.21

AS MÃES

     (lendo Goethe)


As mães são
as cuidadoras.

A elas
é dado o barro
com que moldam as formas
as criaturas
cada qual com a sua vida...

Vidas longas
vidas breves
as mães cuidadoras
são cegas
não dizem às criaturas
o tempo dado
de espera

Yvette K. Centeno


DIZER, Eufeme Poesia, Fevereiro de 2021, Leça da Palmeira - Portugal

23.4.21

Os livros

É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo 'eu' entre nós e nós?

Manuel António Pina

COMO SE DESENHA UMA CASA, Assírio & Alvim, Outubro 2011

20.4.21

Nos rios / In den Flüssen

NOS RIOS a norte do futuro
lanço a rede, que tu
hesitante carregas com
sombras
escritas por pedras.

*

IN DEN FLÜSSEN nördlich der Zukunft
werf ich das Netz aus, das du
zögernd beschwerst
mit von Steinen geschriebenen
Schatten.



Paul Celan

Não Sabemos mesmo O Que Importa - Cem Poemas
, Tradução e Posfácio de Gilda Lopes Encarnação, Relógio D'Água Editores, Outubro de 2014

17.4.21

AR LIVRE

Enquanto os elefantes pela floresta galopavam
no fumo do seu peso,
perto, lá andava ela nua a cavalgar o antílope,
com uma asa direita outra caída.
E a amazona seguia...
e deixava a boca no sumo das laranjas.
Os olhos verdes no mar.
O corpo em a nuvem das alturas
- a guardadora
da sempre nova faísca incendiária!

Edmundo de Bettencourt

EDOI LELIA DOURA antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
, organizada por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Janeiro de 1985

2.4.21

OUTRO RIO

Na memória ficará somente o rio.
Nem um verso ficará somente o rio.
A memória secará somente o rio

ficará.

Na memória nem um risco ficará
do que hoje recomponho pedra a pedra
quando lembro das palavras e do vento.


Eucanaã Ferraz

Retratos com Erro, Edições Tinta-da-china, Lda., Maio de 2019

22.3.21

A ÚLTIMA PARAGEM

O eléctrico passava ao longo das casas vermelhas.
As rodas nas torres das minas giravam
como carrosséis num parque de diversões.
Nos pequenos jardins cresciam as rosas sombreadas de fuligem,
nas pastelarias as vespas encarniçavam-se
sobre a cobertura dourada de um pastel.
Tinha quinze anos, o eléctrico deslocava-se
cada vez mais rápido por entre as habitações,
nos prados via malmequeres-dos-brejos amarelos.
Pensava que na última paragem
se desvendaria o sentido de tudo,
mas nada aconteceu, nada,
o condutor comia uma sandes com queijo,
duas velhotas falavam em voz baixa
dos preços, das doenças.

Adam Sagajewski

Sombras de Sombras, Selecção e tradução: Marco Bruno; revisão: Jorge Sousa Braga; prefácio: Adam Kirsch, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Novembro de 2017

19.3.21

À MINHA MANEIRA

Impossibilitado de escrever haikus
por não possuir a mentalidade minimal dum japonês

Queimo ainda bastantes palavras
ao explicar que me inclino sobre o vento
ou sobre o dorso de algum animal

Incapaz do gesto sábio
duma brisa
engulo o tempo à minha maneira

Não posso igualmente saber a savana
coisas tão simples que há nela
por exemplo a gazela
nada sei do distante e do remoto
entretenho-me por casa
a ver o sol com a minha peneira

Se mo pedirem defino harmonia
posso sempre mentir olimpicamente
e fazer haikus à minha maneira

João Habitualmente

Os Animais Antigos, edição objecto cardíaco - casa para as artes, Sociedade Unipessoal, Lda, Vila do Conde, Janeiro de 2006

14.3.21

LIGA PATRIÓTICA

Que homens tão sublimes em assembleias, repuxadas
As suíças,
Meticulosos, solenes, esses gestos
Redondos e ridículos,
Que envolvem o som de um mundo tão pequeno
E soleníssimo.

Madeiras enceradas com o bafo
Amarelento da respiração nacional do mando.
O país passa nas vozes, as casacas estremecem nos seus
púlpitos,
Meus amigos, a nação ergue-se
Agradecida.

Sento-me na rasa e desdourada sala do meu corpo,
Já sofri o bastante nos meus nervos doentes.
Apanho o pó das sílabas,
E recolho-me ao chão dos meus castigos:
Amar amargamente a pátria.

De norte a sul, nessa névoa de saudade e fingimento
O povo cala, a burguesia arranha,
A nobreza consente. Sou um civil da ética, falta-me
Provavelmente o baraço ao pescoço, o empenho
Das barbas.

Um gesto de grandeza pode ter a medida inútil
Dum mar árido de peixes,
Dum céu sem uma nuvem sobre o chão
Terrivelmente seco, sedento,
Se não soubermos perdoar a barbárie
À nossa volta.

É como se uma onda de vento se erguesse
Lenta mas fulminante contra o nosso perfil sonhado por outras
          vozes
Quiméricas
E a nossa própria voz não tivesse de súbito
Resposta
E tudo e todos fossem sempre só
Uma pergunta.


Armando Silva Carvalho

ANTHERO, AREIA & ÁGUA, Assírio & Alvim, Junho 2010

8.3.21

A DIVISIBILIDADE: A VISIBILIDADE A DOIS

A mulher divide-se em gestos particulares
o homem divide-se também. Se o átomo é
divisível só o poeta o diz.

A mulher divide-se em gestos
extremos coloridos arenosos destilados.

Dois homens são duas divisões de uma
casa que já foi um animal de costas
para o seu pólo mágico.

A divisibilidade da luz aclara os mistérios.
A mulher tem filhos. Descobrem-se
partículas soltas um dedo mínimo
o peso menos pesado da balança
um cabelo eloquente em desagregação.

Gestos estrídulos dividem a mulher
o homem divide-a ainda.


Luiza Neto Jorge

poesia 1960-1989, organização e prefácio de Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, Setembro 2001

5.3.21

TRAVESSA DOS GATOS

          à memória de Eugénio de Andrade


Para quê mais versos?
O poema está feito, cabe
inteiro nestas sílabas de pedra
onde gostei tanto de magoar os pés.

Correm ao sol de Fevereiro
- pretos, quase brancos
e malhados - os príncipes
desta terra, os únicos.

Não te atrevas a segui-los, dona morte.


Manuel de Freitas


JUROS DE DEMORA, Assírio & Alvim, Março 2007 (Exemplar N.º 317/400)

27.2.21

AUTO-RETRATO

Estado civil casado
nacionalidade portuguesa
triste se alegre e sorridente quando triste
muito mais egoísta se se veste de altruísta
chefe só de família olhar cansado
calva prometedora e tendência obesa
à beira dos quarenta anos de idade
e ajoujado ao peso de vários passados
tímido e trágico e capaz de crueldade
tanta quão tamanho o arrependimento
temendo hoje não tanto já fazer o mal
como fazer algumas ou pior uma só vítima
incoerente e instável ora dado a bons bocados
como logo açoitado pelos ventos dos cuidados
poeta para mais por condição
homem que só pensar sabe afinal fazer
que vive a arte do amor a vida até como destruição
digam vossas mercês como devia ele ser
pois sempre assim seria inútil mesmo renascer

                                                                                   
 Madrid, 1972


Ruy Belo

TODOS OS POEMAS III, Assírio & Alvim, Outubro 2004

20.2.21

ERRANTE VAGUEAR

Errante vaguear
d'o que nem chega a ser
presença que se veja,
ausência a adivinhar:

a desolada teia
sem tear que a complete
com força que a enleie
em uma trama certa.

Ânsia que se deseje
e transformada em fado,
uma ramo que floresça
sem nada recear,

imagem que alivie
porém que m'enegrece
quando julgo que é dia
e já tudo anoitece.

António Salvado

ECOS DO TRAJECTO seguido de PASSO A PASSO, Edição Ricardo Neves Produção, Lda. - A.23 Edições, 2014

19.2.21

POEMA DA MORTE APARENTE



Nos tempos em que acontecia o que está acontecendo agora
e os homens pasmavam  de isso  ainda  acontecer  no tempo
               deles,
parecia-lhes a vida podre e reles
e suspiravam por viver agora.


A suspirar e a protestar morreram.
E agora, quando se abrem as covas,
encontram-se às vezes os dentes com que rangeram,
tão brancos como se as dentaduras fossem novas.

António Gedeão

POESIAS COMPLETAS (1956 -1967), Portugália Editora, Lisboa, Janeiro de 1971

13.2.21

RETRATO (QUASE)

Pequena a cabeça. De ave.
Pequenos os olhos. Nocturnos.
Breve a cintura e seios breves.

Compridos cabelos. Algas
no rastro quente e mate
do corpo longo (barco e púrpura).

Da lição do mar
quase a graça e a perícia
na arte de marear (andando).

A regra de ouro
da mulher fenícia.



                           Diplomata, Abril, 81

Luís Veiga Leitão


OS POETAS DO CAFÉ NO CAFÉ DIPLOMATA / PORTO 1981

12.2.21

ONDAS


Sei que me estou a afogar, mas ao menos
consigo manter de fora a cabeça.
De modo que, por favor,
não venhas tu fazer ondas.

*

OLAS


Sé que me estoy ahogando, pero al menos
logro mantener fuera la cabeza.
Así que, por favor,
no vengas tú a hacer olas.


Amalia Bautista



CORAÇÃO DESABITADO, Selecção e tradução de Inês Dias, Averno | 2018


9.2.21

[Antes não havia muros, os que passavam]

Antes não havia muros, os que passavam
Iam com o silêncio de Deus à sua ilharga
E colhiam do chão o trevo e a hera
Como se não houvesse amanhã.

Até que alguém inventou a antropofagia,
O garfo e a colher, a faca de trinchar
E todos começamos a dar tombos
Nas veredas e nas zonas limítrofes

Dos quintais. Daí à invenção
Dos muros foi um passo, dizem alguns
Que com muita utilidade, sobretudo as crianças

E os gatos. Por mim, fazem diferença.
Estranho-lhes o peso e a condição oblíqua
Com que interferem com a minha independência.


Amadeu Baptista

POEIRA ESCURA, editora Eufeme, Leça da Palmeira - Portugal, Janeiro de 2021

1.2.21

RESPIRAÇÃO ASSISTIDA

Eu vi a morte
de noite - névoa branca -
entre os frascos do soro
rondar a minha cama

era um trasgo
e como tal metera-se
pelas frinchas; noutra versão
coando-se através
dos nós da madeira
ou noutra ainda
imitando à perfeição
o gorgolejar da água
nos ralos: eu tremia
covardemente enquanto
ela raspava a parede
com unhas muito lentas

eu vi? ouvi a morte?
com toda a probabilidade
e por instantes
era ela - luz negra -
tentando cegar-me



     Pardilhó
 7/9-VIII-94
       Lisboa
    27-XI-95


Fernando Assis Pacheco


RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Novembro 2003

31.1.21

A crucificação pelas imagens


Esquecemos as palavras,
as inscrições na pedra,

o espelho do mundo
nos ecrãs de plasma --

a crucificação pelas imagens.



Paulo Teixeira


A Comoção do Mundo, Editorial Caminho, Lisboa, 2020

27.1.21

Paisagem

PAISAGEM com seres-urna.
Conversas
de boca de fumo para boca de fumo.

Eles comem:
a trufa-demente, um pedaço
de poesia não soterrada,
encontrou língua e dente.

Uma lágrima corre de volta para o seu olho.

A metade esquerda, órfã
da vieira -
ofereceram-ta,
depois ataram-te -
ilumina o espaço à escuta:

o jogo de tijolos contra a morte
pode começar.

Paul Celan

Não Sabemos mesmo O Que Importa - Cem Poemas, Tradução e Posfácio de Gilda Lopes Encarnação, Relógio D'Água Editores, Outubro de 2014

17.1.21

Peregrinatio ad loca abjecta

     

     Estão podres as palavras - de passarem
     por sórdidas mentiras de canalhas
     que as usam ao revés como o carácter deles.

     Jorge de Sena



Quem aclama e dá palco
a tanta velhacaria?
Quem no fundo, lá no alto
da solerte soberbia,

incentiva o insulto,
acicata a picardia,
porventura de teúda
e manteúda perfídia?

Mas que polvo financia
os grunhidos e ameaças,
e engorda enquanto cria
uma teia de trapaças?

© Domingos da Mota

12.1.21

RECEITA DE POEMA


Um poema que desaparecesse
à medida que fosse nascendo,
e que dele nada então restasse
senão o silêncio de estar não sendo.

Que nele apenas ecoasse
o som do vazio mais pleno.
E, depois que tudo matasse,
morresse do próprio veneno.

Antonio Carlos Secchin

Desdizer, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Abril de 2018

3.1.21

ELEGIA



Nunca, como a teu lado, fui de pedra.


E eu que me sonhava nuvem, água,
brisa sobre a folha,
fogo de mil cambiantes labaredas,
apenas soube jazer,
pesar, que é o que sabe fazer a pedra
à volta do pescoço do afogado.


*


ELEGÍA


Nunca, como a tu lado, fui de piedra.


Y yo que me soñaba nube, agua,
aire sobre la hoja,
fuego de mil cambiantes llamaradas,
sólo supe yacer,

pesar, que es lo que sabe hacer la piedra
alrededor del cuello del ahogado.


         En la tierra de en medio, 1972

Rosario Castellanos


Poemas Escolhidos, Tradução, selecção e notas de Jorge Melícias, Prefácio de José Rui Teixeira, Antígona Editores Refractários, Junho 2020