30.11.17

[Tem o cheiro do pão]

Tem o cheiro do pão
acabado de cozer
no forno de lenha

Sobre a mesa
aninhados
os frutos acabados de colher

Em silêncio
as mãos
seguem essa luz

Manuel Silva-Terra

SER CASA, Editora Licorne

29.11.17

OS BÁRBAROS

Nós é que éramos os bárbaros.
Pensando em nós é que vocês tremiam nos vossos palácios.
Era por estarem à nossa espera que o vosso coração batia desordenadamente.
Das nossas línguas é que vocês diziam:
talvez se componham só de consoantes, 
de frufus, sussurros e folhas secas.
Nós é que vivíamos nas florestas negras.
De nós é que tinha medo Ovídio em Tomi,
Nós é que adorávamos deuses com nomes
que vocês não conseguiam pronunciar.
Mas também nós conhecemos a solidão
e a angústia, e desejámos a poesia.

Adam Zagajewski

Sombras de Sombras, Selecção e tradução, Marco Bruno, revisão, Jorge Sousa Braga, prefácio, Adam  Kirsch, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Novembro de 2017

18.11.17

As coisas

Há em todas as coisas uma mais-que-coisa
fitando-nos como se dissesse: "Sou eu",
algo que já lá não está ou se perdeu
antes da coisa, e essa perda é que é a coisa.

Em certas tardes altas, absolutas,
quando o mundo por fim nos recebe
como se também nós fôssemos mundo,
a nossa própria ausência é uma coisa.

Então acorda a casa e os livros imaginam-nos
do tamanho da sua solidão.
Também nós tivemos um nome
mas, se alguma vez o ouvimos, não o reconhecemos.

Manuel António Pina

COMO SE DESENHA UMA CASA, Assírio & Alvim, Outubro 2011

6.11.17

A FONTE

Com voz nascente a fonte nos convida
A renascermos incessantemente
Na luz do antigo Sol nu e recente
E no sussurro da noite primitiva

Sophia de Mello Breyner

11 POEMAS, movimento poesia, distribuições movimento, lda., Lisboa, Maio de 1971