29.4.12

DOIS CIMBALINOS ESCALDADOS

Não sei, meu amigo, o que
irradiava mais calor, se
a chávena escaldada, se
o cimbalino fervente, se
as conversas sobre livros de poesia
que nesse tempo, ainda
acreditávamos ser a maior
razão

Curto, normal, cheio
o cimbalino, esse negro odor
com moldura branca
numa mesa de café, na cidade
onde habitávamos desde sempre.

Inês Lourenço

Sete poemas, in Revista de Poesia Relâmpago N.º 28, Abril de 2011, Ano XIV.

27.4.12

UMA ESCADA QUE SOBE PELOS DEGRAUS DE TI

Só pode terminar inacabada

Nunca entendi os que se dedicam à tarefa de acabar a obra.
Uma  obra, como   a   vida -- uma   obra,  vida  mesma -- só
pode terminar inacabada.

                                               *

[...]

Jorge Roque

«algures entre o jornal e a revista (...)», CÃO CELESTE # 1, Lisboa, Abril de 2012 

25.4.12

25 DE ABRIL

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen

CEM POEMAS DE SOPHIA, Selecção e introdução de José Carlos de Vasconcelos, Visão-JL, Editorial Caminho, SA, Lisboa, Agosto de 2004

22.4.12

O ANO DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO

(...)

E agora escrevo, e não tem isto que ver com o amor,
o que seja o amor
- o bando sobrevoa os telhados,
o columbófilo faz a dramaturgia dos pombos,
acena-lhes panos para que reconheçam o ninho,
mostra-lhes o columbário,
abre-lhes o caminho aéreo para o pombal,
pousa com fragor a pistola no tampo da mesa
e mata-nos por antecipação porque é bovino o povo,
há-de deixar-se ir tempo demais na miséria,
repartindo-se pelas múltiplas partes da sua própria diáspora,
vão uns para a guerra, outros para a emigração,
aos que ficam nada mais restará que esperar
e tudo ficará escalavrado como dantes,
tudo será decisivo como termos aqui estado

(...)

Amadeu Baptista

O ANO DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO, &etc, Lisboa, 2010

18.4.12

O QUE DIZ A MORTE

"Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem,
E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As próprias obras vãs, de que escarnecem...

Em mim, os Sofrimentos que não saram,
Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como num mar em mim desaparecem." --

Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das coisas invisíveis, muda e fria.

É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar, mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz dio dia.

Antero de Quental

Eugénio de Andrade, Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Campo das Letras - Editores, S.A., Porto, Novembro de 1999

16.4.12

POEMA PARA 2002

Caxumba, catapora, amigdalite,
miopia, nevralgia, crise asmática.
Dor de dente, dor de corno, hepatite,
diabete, arritmia e matemática.

Helenas, Marianas e Marcelos,
tomate, hipocondria e chicória,
sacerdotes, baratas, pesadelos,
calvície, dentadura e desmemória.

Pé quebrado, verso torto, ruim de bola,
nervoso, nariz grande, cu de ferro.
Desastrado, imprudente e noves fora

muita prosa pr'um gozo quase zero.
E para coroar todos os danos
bem-vindos sejam os meus cinqüenta anos.

Antonio Carlos Secchin

Todos os Ventos, Antologia Poética, selecção e prefácio de Arnaldo Saraiva, Quasi Edições, Novembro de 2005

14.4.12

LADAINHA

Concha perfumada
Pórtico real
Princesa das flores
Porta misteriosa
Pérola vermelha
Coração de peónia
Pegada de gazela
Pórtico de jade
Palácio de púrpura
Delta negro
Pote de mel
Botão de lótus
Gruta de canela
Porta alada
Flor da lua

Rogai por nós

Jorge Sousa Braga

A FERIDA ABERTA, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio 2001

12.4.12

OXÍMORO

Desde a esfinge de Tebas
à águia dos impérios,
das sandálias dos deuses
aos anjos de Rilke,
também as asas pertencem
aos efémeros insectos,
às aves domésticas ou
ao último abutre
que limpa selvas e planuras
da podridão da morte.


Inês Lourenço


A ENGANOSA RESPIRAÇÃO DA MANHÃ, ASA Editores II, S.A., Porto, Abril de 2002

11.4.12

DELFOS

Entrarás em Delfos pela porta
secreta - a da serpente. É esse,
e não outro, o caminho
para o templo. Junto
à pedra
da ara colherás
o ouro exausto
do tempo e o sangue
inútil dos sacrifícios. E
saberás que amor
e morte são
a outra face do mito.

Albano Martins

CASTÁLIA E OUTROS POEMAS, Campo das Letras - Editores, S.A., Porto, Maio de 2001

6.4.12

SEXTA-FEIRA SANTA

A conversa era sobre Deus,
embora o teólogo  estivesse inclinado
a pensar que fosse sobre outra coisa,
pois era hora de jantar.
Pegou num cigarro e perguntou às senhoras se podia fumar.
Tinha devorado o pargo com honesto apetite
e elogiava as virtudes do cozinheiro.
Só Deus, Algures, chorava sobre
os despojos da sua pequena criatura na travessa
a caminho da copa, antes da sobremesa.

                                        26/11/00

Manuel António Pina

POESIA REUNIDA, Assírio & Alvim, Novembro de 2001

1.4.12

FOME

A fome não é um verso que tu digas
na aragem de desceres a madrugada.

É uma escassez de ombros que são vidros
partidos pelas mãos de quem os guarda.

É o imaginar-te ali, aqui tão perto,
e encontrar apenas a cerrada

névoa que é tangente ao som do nada.

João Rui de Sousa

OBSTINAÇÃO DO CORPO, Edição O MIRANTE - Jornal da Região do Ribatejo, Santarém, Outubro de 1966