21.12.13

Soneto de Natal

       com que a vida resiste, e anda, e dura.

          Pedro Tamen


Não digo do Natal - mas da natura
de quem faz do poder um pesadelo
que aprofunda as sementes da amargura
através do garrote e do escalpelo;

não digo do Natal - mas da tortura
que macera as feridas com desvelo,
impassível à dor que já satura
os ombros causticados pelo gelo.

Dissesse do Natal - seria bom
que pudesse cantar, subir o tom
das loas e dos hinos e dos ritos,

se em vez duma esmola, tão-somente
renascesse o respeito pela gente
que povoa o Natal dos aflitos.

© Domingos da Mota


15.12.13

Poema para 2013

          sob o estigma da peste grisalha


Não vou somar aquilo que perdi,
sequer subtrair o que ganhei
ao muito que busquei e persegui
para atingir o pouco que apurei;
não vou patentear, mostrar aqui
o mapa dos caminhos que sonhei,
de tantos, tantos sítios que não vi
e que excedem de longe os que trilhei;
não vou apascentar os desenganos,
por muito defraudado que me sinta,
sequer ajoelhar perante os danos;
e mesmo que o tempo me desminta,
apesar do disfórico ferrete,
bem-vindos sejam os meus sessenta e sete


© Domingos da Mota


10.12.13

PUNHAL EXCELENTE

Já quase não há, o punhal excelente
com que a mim próprio me esventrei algumas vezes
para melhor me desentranhar em versos --

-- esses lícitos salpicos de lama,
essas coisas à toa, hossanas, ambições,
promessas, juras, astutas
ingenuidades: toda essa merda que há
dentro do poeta e com que ele gosta
de borrifar os outros. Para que
não se fiquem a rir.

E eis que agoniza: o gume rombo,
manchas inamovíveis de ferrugem,
incapaz de incisões, definitivamente
inoperacional o punhal excelente.

Paz ao seu aço.

A. M. Pires Cabral

gaveta do fundo, Edições Tinta-da-China, Lda., Lisboa, Novembro de 2013

18.11.13

Relatório

É um  mundo pequeno,
habitado por animais pequenos
- a dúvida, a possibilidade da morte -
e iluminado pela luz hesitante de

pequenos astros - o rumor dos livros,
os teus passos subindo as escadas,
o gato perseguindo pela sala
o último raio de sol da tarde.

Dir-se-ia antes uma casa,
um pouco mais alta que um império
e um pouco mais indecifrável
que a palavra casa; não fulge.

Em certas noites, porém,
sai de si e de mim
e fica suspensa lá fora
entre a memória e o remorso de outra vida.

Então, com as luzes apagadas,
ouço vozes chamando,
palavras mortas nunca pronunciadas
e a agonia interminável das coisas acabadas.

Manuel António Pina

COMO SE DESENHA UMA CASA, Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro 2011

11.11.13

Soneto omnívoro

Pois eu gosto do bucho e da fressura,
dos ossos da suã, da focinheira,
do redanho, do lombo e da assadura,
da morcela de sangue à farinheira;

saboreio o arroz de sarrabulho
e celebro uma quente cabidela,
se o reco for cevado a lavadura
e de pica no chão se fizer ela;

gosto da burzigada, e da fartança
à mesa duma boa rojoada
(algumas bem me acodem à lembrança
quando enfrento uma posta de pescada);

omnívoro que sou, de boa boca,
gostava de gostar de mandioca.


© Domingos da Mota

6.11.13

Filhos da época

Somos filhos da época
e a época é política.

Todos os teus, nossos, vossos
problemas diurnos e nocturnos
são problemas políticos.

Quer queiras quer não,
os teus genes têm passado político,
a pele um tom político,
os olhos um aspecto político.

O que dizes tem ressonância,
o que calas tem expressão,
seja como for, política.

Mesmo passeando pelo campo,
dás passos políticos
em solo político.

Poemas apolíticos são também políticos
e lá em cima brilha a lua,
unidade que deixou de ser lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Que questão, diz, querido.
A questão política.

Nem é preciso ser humano
para ganhar importância política.
Chega que sejas petróleo,
ração composta ou matéria reciclável.

Ou a mesa de debate,
cuja forma foi discutida meses a fio:
em que mesa se negoceiam a vida e a morte?
Redonda ou quadrada?

Entretanto pereciam homens,
morriam animais,
ardiam casas,
tornavam-se os campos bravios
como nos tempos antigos
e menos políticos.

Wislawa Szymborska

Alguns gostam de poesia (Gente na ponte), Antologia, Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska, Cavalo de Ferro Editores, Lda., Lisboa, Março de 2004

23.10.13

Pois eu gosto de tripas

Pois eu gosto de tripas, oh se gosto,
em boa companhia ou sozinho,
mas à moda do Porto. Não desgosto
do arroz de sarrabulho que no Minho

acompanha os rojões para prazer

de quem  quer degustar o que mastiga;
o leitão à Bairrada pode ser
uma óptima escolha; há quem diga

que gosta do cozido à portuguesa

ou da vitela assada de Lafões
ou de peixe fresquíssimo na mesa
ou doutras saborosas tentações.

Também digo que sim, que nisso alinho:

só falta escolhermos o tal vinho.

© Domingos da Mota



a partir da leitura dos sonetos, respectivamente, de Vinicius de Moraes [Não comerei da alface a verde pétala], e de Vasco Graça Moura [pois eu gosto de lombo e feijoada], no mural da Prof. Doutora Maria Alzira Seixo, no Facebook

6.10.13

Meditação íntima do Infante D. Fernando sobre Ceuta e a sua vida

"De honra e fé atapetaram
os verdugos meus passos. As razões
de estado me pedem santidade;
a burocracia espera apenas a data
para me erguer altar.
A tudo assisto
com ironia e distância enquanto
minha vida lentamente passa.

Que Deus me dê paciência e raios
levem esta maldita praça!"

Alberto Soares

(Arquivo Mortal, 2013)

colhido no blogue Arpose, em Notas de Leitura VI: Sobre a poesia de Alberto Soares, de HN)

23.9.13

António Ramos Rosa (1924-2013)

[Em qualquer parte um homem]


Em qualquer parte um homem
discretamente morre.

Ergueu uma flor.
Levantou uma cidade.

Enquanto o sol perdura
ou uma nuvem passa
surge uma nova imagem.

Em qualquer parte um homem
abre o seu punho e ri.

António Ramos Rosa

O GRITO CLARO, (selecção de poemas) [Primeira Parte], Colecção «A Palavra», n.º 1, Faro, 1958

13.9.13

UMA LARANJA PARA ALBERTO CAEIRO

Venho simplesmente dizer
que uma laranja é uma laranja
e comove saber que não é ave

se o fosse não seriam ambas
uma só coisa volátil e doce
de que a ave é o impulso de partir
e a laranja o instinto de ficar.

Não sei de nada mais eterno
do que haver sempre uma só coisa
e ela ser muitas e diferentes
e cada coisa ternamente ocupar
só o espaço que pode rodeada
pelo espaço que a pode rodear.

Sei que depois de laranja
a laranja poderá ser até 
mesmo laranja se necessária
mas cada vez que o for
sê-lo-á rigorosamente
como se de laranja fosse
a exacta fome inadiável.

De ser laranja gomo a gomo
o íntimo pomo se enternece
e não cabe em si de amor
embriagada de saber
que a sua morte nos será doce.

Natália Correia


O VINHO E A LIRA, Edição de Fernando Ribeiro de Mello, Lisboa

4.9.13

"Aquisição fabulosa"

     Para João Cabral de Melo Neto


Lapidar o poema.
Lançá-lo limpo à língua,
Sem o peso do vácuo.
Palavra por palavra,

Sem prematura pressa.
Palavra por palavra,
Sem proezas supérfluas.
Palavra por palavra,

Sem pretensões precárias.
Para depois de pronto,
Aos deuses, devolvê-lo,
Sem o peso do véu.

Adriano Nunes

(Publicado com a autorização do poeta. Mais poemas do autor, entre outros sítios, em Que Faço Como Que Não Faço).

30.8.13

Num tempo póstumo

Por vontade dela, todos os poetas 
Iam parar ao nono círculo, mordendo-se
No crânio, sôfregos de cérebro, num nexo
De egoísmo e raiva, inferno dos maldizentes.

Inflexíveis, ambiciosos, acirrados,
Presos das maxilas, ferozes como bestas
Disputando-se o lugar, cravados, montados
Como Ugolino no arcebispo Rogério.

E quando ela fizesse o percurso gelado, 
Guiada e apoiada pela mulher de Virgílio,
Eu gritava: "Meu amor, quem é o laureado
No nosso país verde lá em cima, qual a vida

Mais dedicada e exemplar?". Diria ela:
"Os meus ouvidos de viúva não atendem
Às notícias sulfurosas de poetas
E poesia. Não podias, no nosso tempo,

Libertar-te mais vezes, descer risonho
Do teu quarto, e passear comigo ao sol-pôr,
E com os teus filhos - como naquele serão 
De feno e flores, as rosas bravas já a murchar?"

E ainda (outro autor ferrando-me já a nuca):
"Não eras o pior. Ansiavas por um tacto
Afável e indiferente, tipo 'todos têm culpa'.
Primeiro nós, depois os livros, abandonaste."

Seamus Heaney

DA TERRA À LUZ poemas 1966 - 1987, Tradução, prefácio e notas de Rui Carvalho Homem, Relógio D'Água Editores, Janeiro de 1997

21.8.13

Poética

O verso deve ser duro
como fio de navalha
um relâmpago no escuro
uma faúlha na palha

o verso deve ter lume
mas sem fogo-de-artifício
o verso que acera o gume
o verso que apura o vício

Domingos da Mota

de Tríptico e outros poemas, publicado em Triplov.

9.8.13

Desconstrução da luz

Chovia sobre a sombra
das ruas pobres
penteadas para o turismo
Era uma chuva silenciosa
rala
pobre ela também de luz
E o amigo
que já não via as palmeiras
navegantes do seu sonhar
deslizava para a morte
numa poeira dourada de sons
cansados da própria beleza
Sentimos o primeiro sopro
do luto que chegava
a branco e negro
                                                           2007

Urbano Tavares Rodrigues

Horas de Vidro [Poemas do Novo Século], Publicações Dom Quixote, Lda., Lisboa, Fevereiro de 2011

20.7.13

Contra a depressão

De cachafundos

na fossa
das Marianas
de Tonga
das Curilas
das Filipinas
de Kermadec
de Izu-Bonin
do Japão
de Porto Rico
de Atacama
de Java
de Sandwich do Sul
de Litke Deep
...

de Berlim
de Frankfurt
de Bruxelas
de Estrasburgo
de Washington
...

de Moscovo 
de Kiev
de Pequim
...

de São Caetano à Lapa
do Largo do Caldas
do Largo do Rato
...

do Terreiro do Paço
de São Bento
...

de Belém

libera nos, Domine!


© Domingos da Mota


17.7.13

de nada - 12

oh
se os tivessem 
assassinado na juventude
oh
mas o passado
sabe 
proteger-se

não sei já
de qual deles falávamos
se era de todos
de todos os que tiveram
os seus incêndios do Reichstag
Bush
o seu 11 de Setembro
Pinochet
as suas panelas das domésticas
já não sei

mas que adiantava 
neste mundo
onde os criminosos se instalaram
com a sua conhecida lei
dos 3 magos do Ocidente

Elias
Melias
Melambes

Alberto Pimenta

de nada, Edição Boca - palavras que alimentam, Lda., Novembro de 2012

13.7.13

[Eu tenho de nação ideias desmembradas]

Eu tenho de nação ideias desmembradas,
comungo  do ranger de dentes
com os vizinhos,
comungo de açularem
os perros uns contra os outros,

mas não eu contra todos,
só contra alguns,
e mesmo assim
isolo-me no bosque do silêncio,
fujo para esta folha,
os cães ficam lá fora.

No entanto, eu que empunhei o fogo
sem Deus se ter lembrado
de chamar a águia,

quando os sinos e as sirenes
soarem a rebate, terei de ir,
o fígado desfeito por cirroses
somadas de desgosto,

embora aos meus vizinhos
pouco falte para se armarem
nos conflitos de bairro,
em defesa do quarto e da cozinha.

No fundo, sei que sou o tempo,
as minhas coordenadas e as alheias,
e daí que haja tempo para tudo,

um tempo para a paz,
um tempo para a vida,
um tempo para a guerra e para a morte,
um tempo para ser-se tudo e nada
ao mesmo tempo, a pele dos outros
que desvisto com suma falta de piedade.

Daí que não acredite em maiorias.
As maiorias são volúveis,
fácil é comprar-lhes
a consciência e o nome da rua,

e agora os estrangeiros chegam,
estendem as metástases,
ocultam lentamente o sol,
e os olhos de tal gente
tornam-se mortiços e cegam.

Somente um genocídio podia convencê-la
de que havia um reduto aqui

e não sei se acreditava,

tantas formas há de se confiscarem
as cidades, os campos, os mosteiros,
os palácios, a Língua,
um longo rol de fábricas,
a energia dos rios e do vento,
milhões de vozes
que constroem o amor
a partir de satélites,

e ninguém se interessa:
é pouco provável
que os estrangeiros entrem numa aldeia
ou assolem as ruas suburbanas
e sejam invisíveis,
embora não se vejam.

Nuno Dempster

UMA PAISAGEM NA WEB, &etc, 2013

10.7.13

Irrevogável questão

Dado o dito por não dito
(irrevogável questão),
que pensar do sobredito
e do seu golpe de mão?
E do coro inaudito
que perante a podridão
do cadáver esquisito,
faz do dito a solução?
Que pensar de gente assim 
e da sua hipocrisia,
e de quem assim-assim
aguenta a vilania
dum embuste surreal,
em nome de Portugal?


© Domingos da Mota

24.6.13

CAVA

Livros que suportam tudo, até a estante.
O gozo da poesia como uma faca
afiando os dedos.
Uma mão que segura pelas pontas
a possibilidade de alguns gestos.
Folhas que num tempo adiantado
impõem o silêncio e outra vez
a vénia, a veia, a cova.

Marta Chaves

Telhados de Vidro, N.º 18 . Maio . 2013, Averno, Lisboa

20.6.13

DISCURSO TARDIO À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO

Éramos jovens: falávamos do âmbar
ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o verão; e sabíamos 
como a música sobe às torres do trigo.

Sem vocação para a morte, víamos passar os
          barcos,
desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: eis o espaço ardente
do ventre, espaço denso, redondo, maduro,

dizias: espaço diurno onde o rumor
do sangue é um rumor de ave --
repara como voa, e pousa nos ombros
da Catarina que não cessam de matar.

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também
ela, também ela a não tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.

Morre-se de ter uns olhos de cristal,
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.

Catarina ou José -- o que é um nome?
Que nome nos impede de morrer,
quando se beija a terra devagar
ou uma criança trazida bela brisa?

1972

Eugénio de Andrade

Homenagens e Outros Epitáfios, Editora Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Edição 8.ª, Setembro, 1993

13.6.13

[Pobre velha música!]

Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.

Fernando Pessoa

POEMAS DE FERNANDO PESSOA, Selecção, prefácio o posfácio de Eduardo Lourenço, revista Visão e JL, Fevereiro de 2006

11.6.13

- O coração - (Stephen Crane)

No deserto,
vi uma criatura nua, brutal,
que de cócoras na terra
tinha o seu próprio coração
nas mãos, e comia...
Disse-lhe: «É bom, amigo?»
«É amargo - respondeu -,
amargo, mas gosto
porque é amargo
e porque é o meu coração.»

AS MAGIAS  ALGUNS EXEMPLOS poemas mudados para português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010

2.6.13

[nada pode ser mais complexo que um poema,]

nada pode ser mais complexo que um poema,
organismo superlativo absoluto vivo,
apenas com palavras,
apenas com palavras despropositadas,
movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
nada mais que isso,
música,
e o silêncio por ela fora

Herberto Helder

SERVIDÕES, Assírio & Alvim, Porto, Maio de 2013

5.5.13

Penoso engano

Esmifram, roubam, sugam o tutano
daqueles que ora sendo reformados
deram muito de si, ano após ano,
e mesmo, para mal de seus pecados,
confiaram até (penoso engano)
em que jamais seriam esbulhados,
não iriam tão longe, com tal dano,
em nome de mandantes, paus-mandados.
Agora que os abutres sobrevoam
e aguçam as garras, sem descanso,
agora que os achaques não perdoam
e agravam a crueza do balanço,
agora que a vida mais se agasta,
não se podem calar, e gritam: basta!


© Domingos da Mota


26.4.13

[Agudas apontaste ao alvo escuro]

60.

Agudas apontaste ao alvo escuro
velhas setas azedas, já nem picam,
antes, de vício, rodam no seu furo
onde vermes e ranhos se fabricam.

Deitado assim de costas escarpadas
(costas devidas ao que adeus me deu),
cuspo calado as palavras opadas
que zurro ao ar e não chegam ao céu.

Deitado ainda, já nem sei que pé,
que força ou rasto ainda me sustente;
persisto e visto a capa que relê

as palavras antigas do presente,
as palavras, as figas: rodapé
do amor a voar, além, ausente.

Pedro Tamen

Rua de Nenhures, Publicações Dom Quixote, Lisboa,  Março de 2013

25.4.13

CIDADE DOS OUTROS

Uma terrível atroz imensa
Desonestidade
Cobre a cidade

Há um murmúrio de combinações
Uma telegrafia
Sem gestos sem sinais sem fios

O mal procura o mal e ambos se entendem
Compram e vendem

E com um sabor a coisa morta
A cidade dos outros
Bate à nossa porta

Sophia de Mello Breyner

GRADES, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1970

20.4.13

Pastoral

Sobre silva, sarça-ardente
de desmedida altivez, 
apenas

e tão-somente turificado
expoente de pesada 
pequenez.


© Domingos da Mota


18.4.13

Genealogia

Sabia de onde vinha.
Não pretendia escondê-lo. Do pai e da mãe,
uma mesma herança de fome e de ostentação.
Causa, consequência,
agredido, agressor,
um igual legado de ignorância e de escravatura,
de poder e de impotência.
Diria de onde vinha,
e que quando confrontado com a sua própria violência
o tempo acaba sempre por se vingar.
Mais raramente a história.

Madalena de Castro Campos

O FARDO DO HOMEM BRANCO, Edição Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Março de 2013

16.4.13

O rombo

Basta, meu velho,
basta de ser
verbo-de-encher.

Estes diabos
são insolentes,
alçam os rabos,
mostram os dentes
e redesenham
novos pacotes,
novos embrulhos
excruciantes,
piores que Judas
Iscariotes.

Reviram itens,
pontos e vírgulas
e portarias,
lavram despachos
que nem Calígula
se atreveria.

Fazem das suas:
e grassa a fome,
a fome negra
que enche as ruas,
e tudo em nome
do que os cega.

Basta, meu velho.

Mas se duvidas,
como Tomé,
pega no dedo,
toca na ferida,
e vê o rombo
que tens, José.

© Domingos da Mota


10.4.13

Bode expiatório

Olha, meu velho,
vê o aparato,
fazem de ti
gato-sapato
com o aperto
(obrigatório?)
de que és o bode
expiatório.

Repara bem
nas ameaças
destes fedelhos,
e nas trapaças.
Mudam as leis,
trocam as normas,
dão-te dois reis
de mel coado,
baixam pensões,
esbulham reformas,
tributam mais
taxas, impostos,
tiram-te a pele,
esburgam-te os ossos.

Falam de peste,
peste grisalha,
e desinvestem
em quem trabalha,
o desemprego
desenfreado,
desassossego
de cabo a rabo;
e tu o fardo,
ora a velhice,
mais um agravo
sobre a mesmice.
Já não respeitam
cabelos brancos,
surdos e cegos,
mudos e mancos.

Abrem as covas.
Buscam heranças
com acrimónia,
letras, livranças,
pratas, baixelas
e dentaduras
novas e velhas,
rendas futuras,
acções cotadas
e promissórias,
penduricalhos
e vanglórias.

Vê a perfídia
dos paus-mandados
que manipulam
factos e dados:
usam falácias
e silogismos
para cevar
os egoísmos.

Ora, meu velho,
vê lá se acordas,
se te precatas
perante as hordas
de jovens turcos,
velhas raposas,
muitos eunucos
que te destratam
e amofinam
e desacatam
e mortificam,
vê lá se ousas
erguer a voz,
bater o pé
e dizer não,
não à má-fé
do vil projecto,
plano atroz
que te espezinha
e faz de ti
um objecto
que desarrima:
mastins da usura,
com insolência
chocam o ovo
da ditadura,
da prepotência.

Basta, meu velho,
basta de medo
e de vingança.
Antes que tarde,
responde ao vezo
da contradança.

© Domingos da Mota



6.4.13

RESPONSO



Com um  tiro no artelho,
viva o velho!

Com um tiro no abdome,
passa-te  a fome!

Com um tiro no nariz,
«Que é que ele diz?».

Com um tiro no rabo,
podes ir de rabo a cabo!

Com um tiro na cedilha,
terá de ser doutro a filha...

Com um tiro no coração,
oh que sono e que colchão!

Alexandre O'Neill


POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007





3.4.13

antigos

os amigos puros
como livros eruditos
que ao ser abertos
nos perseguem novos

abertos à faca
de rasgar caminhos
novos pois relidos
pelos passos paralelos

puros porque a faca
nunca trai cobarde
o acaso dos reencontros
e dos regressos

os velhos amigos
chegam sempre a tempo
e ao mesmo tempo
aos seus destinos

a lacre em sangue
olho lince desalmado
sempre fieis ao futuro
amigos longe ao lado

Joaquim Castro Caldas

MÁGOA DAS PEDRAS, Deriva Editores, Porto, Janeiro 2008

1.4.13

DIFÍCIL MEDICINA

Ao curar doenças é preciso usar venenos
uma palavra não quando o sim está na cama.
Pequenas concessões enfraquecem a voz toda
e se um poeta canta esperamos mais um ovo.

Bom para gemadas. Mas há que juntar veneno.
Beba-se a mistura como um álcool que nos queima
e vai matar da cura. O não é como o álcool
em verdade envenenante - o século tresanda!

Basta de alcoólicos. Queremo-nos curados
bons a olhar de novo para a esfinge interrogante.
Havemos de beber outra vez de um vinho puro
nós e as palavras - que elas amam não saber

de sins e de gemadas, de nãos e de venenos.

Carlos Poças Falcão

A NUVEM, Edição: Pedra Formosa, Guimarães, Outubro de 2000

29.3.13

Foi para isso que os poetas foram feitos

semear tempestades
e assegurar que cresçam
foi para isso que os poetas foram feitos

esgrimir com a mais idónea
das espadas: a coragem
foi para isso que os poetas foram feitos

namorar a perfeição
e às vezes alcançá-la
foi para isso que os poetas foram feitos

A. M. Pires Cabral

[A Vista Desarmada, o Tempo Largo, Lisboa, Quetzal], in RESUMO a poesia em 2012, poemas escolhidos por Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós, Manuel de Freitas , Edição Documenta, Lisboa, Março de 2013

26.3.13

[Há dias em que em ti talvez não pense]

                                  1


Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver um dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio

Gastão Cruz

FOGO, Assírio & Alvim, Porto, Março de 2013

23.3.13

SEGUNDA PESSOA

Alguém diz tu. Alguém sem nome.
É a terra e o corpo e é o rasto de um sentido.
Alguém diz tu à imagem que se esgarça,
à certeza de uma longínqua razão.
Longe. O passado. Nomes, errados nomes de desejo.
Cego de insónia, nem lembrar te posso.
Nem mesmo em sonho saberia ver-te.
És só o pronome, tu, a ondular-me na boca,
norte magnético num desespero em surdina.
És a sílaba que dói a dor solar de um sentido.
A história avança na cabra-cega sem rostos,
e eu vivo em ti o tu mais só da minha vida.

Óscar Lopes

GAZETA literária, número especial quarto, outubro de dois mil e sete, nos vinte e cinco anos da associação dos jornalistas e homens de letras do porto

15.3.13

Este pov'assim

Este pov'assim
Aguenta tudo
Debita o banqueiro
E dobra o ministro
Um com ar cimeiro
Outro d'ar sinistro

Este povo anda
Para ser exacto
Com a cara à banda
Moído de facto
Abaixo de cão
Pior do que rato

© Domingos da Mota

11.3.13

VELHO POETA QUE TENTA SER MODERNISTA

Também a ele subiram ganas de experimentar
as novas andas.
Alçou-se a elas
e anda com muito cuidado como uma cegonha.
É assombrosa a amplitude de vistas que adquiriu.
Até pode contar as ovelhas do seu vizinho.

Olav H. Hauge

Dropar i austavind, 1966

versão de Amadeu Baptista.

8.3.13

MOEDA

Numa viela, em cima de cartão prensado,
Senta-se mais engelhada que os trapos.
Raspa com as unhas a cabeça do cão atormentado.
O fundo da garrafa serve de caçarola
E atira para aí as moedas.
(Ferrugentas são peças de coleccionadores.)

José Emílio-Nelson

PESA UM BOI NA MINHA LÍNGUA, Edições Afrontamento, 2013

3.3.13

DA LINGUAGEM DAS ÁRVORES E DO VENTO

8.
Cápsula


Tudo se foi embora. Já os sons adormeceram
ou retiraram-se já, como se diz do mar
que abandona a praia;
in-
suportável.
Ficou apenas
o áspero rumor distante da máquina
do mundo. Que funciona mal. Nada
solicita já a tua presença entretanto
inalcançável. A noite solidificou no espaço
entre o sagrado nome das coisas
quietas. Aquele rumor e esta noite são
o que te separa de ti -- frágil distância e
contudo demasiada.

Manuel Gusmão

PEQUENO TRATADO DAS FIGURAS, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2013

25.2.13

CANÇÃO DO POEMA INÚTIL

      ao Domingos da Mota, meu amigo

       "Morreram todos a bordo, mas o barco persegue o intento que
        desde o porto vem buscando."

        - Seféris, com tradução do grego do poeta José Paulo Paes -


não me seduz mais caminhar entre mortos neste teatro vazio
as palavras estão gastas como as minhas sandálias de couro cru
não quero mais percorrer essas ruas sem saída
as feridas que trago nos olhos não cicatrizam mais
deixei para trás as esquinas que carregava comigo
herança de madrugadas inúteis
esqueci também a mulher que me esperava com um sorriso
e um por-de-sol nas mãos muito brancas
preciso respirar noutro porto
este aqui não me serve mais: meu navio naufragou - poucos se salvaram
não preciso de sorrisos enviados em garrafas
se não ancorei onde pretendia foi por não conhecer a intimidade dos ventos
os ventos me enganaram
deixei-me trair por uma bússola que pensei existir na palma da minha mão
o norte no entanto era outro e eu não consegui decifrá-lo
em compensação ainda estou vivo
e não sinto mais nenhuma necessidade do poema

Júlio Saraiva

São Paulo, Brasil

colhido no blogue do autor: Currupião.
uma versão (anterior) do poema pode ler-se aqui.

21.2.13

DENTRO

                                "O um é um e não dois"
                    
                                                Parménides, de Platão


estamos dentro de um dentro
              que não tem fora

e não tem fora porque
             o dentro é tudo o que há

e por ser tudo
é o todo:
tem tudo dentro de si

até mesmo o fora se,
               por hipótese,
se admitisse existir

Ferreira Gullar

Em alguma parte alguma, Edição Babel, Lisboa, 2010

18.2.13

Para tambor e voz

Viola violeta violenta violada,
óbvia vertigem caos tão claro,
claustro.
Lápides quentes sobre restos podres,
um resto de café na xícara e mosca.

Adélia Prado

Poesia reunida, 9.º edição, Editora Siciliano, São Paulo, 1999

30.1.13

Canção do gato neutro

                                             à memória de Manuel António Pina


É preciso ser-se cruel (ou ímpio ou indiferente)
para gizar um plano destes. Conchegá-lo
a noite inteira e arrancar de madrugada pelo
frio de dezembro para o tornar um gato neutro.
Oh, cínico eufemismo. É preciso ser-se homem para
poder compreender que
«neutro» nunca será um
felino que perdeu a doce agressividade (o
esgar provocador ao arrulhar sua dona
o desleixo varonil de urinar no seu canto)
sem nunca ter tido o prazer de rondar
uma gatita. Como te vou receber quando
regressares a casa (cicatriz
no baixo ventre
dormente e abatido) o
olhar enlanguescido impassível de apagar
se fui eu o responsável por te levar pela manhã
se não o arquitecto do plano seu
dúplice executante?
«Neutro» dizem elas
estás «neutro». Confiavas gato em mim
como se abraça um pai ou
um desses bons amigos da cruel adolescência
que às ocultas nos levavam à mundana
iniciação. «Neutro» dizem elas
estás «neutro». Hitler não
diria melhor.

João Luís Barreto Guimarães

você está aqui, Quetzal Editores, Janeiro de 2013