29.12.16

[O verdadeiro poema]

O verdadeiro poema
não se pode ler
É um tiro no escuro
inaudito e cego

Ana Hatherly

FIBRILAÇÕES, Quimera Editores, 2005

26.12.16

IA NO BATALHA

      [sessões matinalmente dominicais
promovidas pelo CineClube do Porto]


saías
p'la crueldade
maior

o Inverno ferrando-te
nos olhos
uma luz metálica
por mera opção cromática
fixavas
as pombas

Ana Paula Inácio

ANÓNIMOS DO SÉCULO XXI, Averno | 2016

23.12.16

Dezembro

Era Dezembro. O natal esperado
(não havia então ecografia),
poderia ser de um rapaz
ou de uma rapariga

(por meninos e meninas eram 
tratadas as crianças que nasciam
em berços de ouro).
E nasceu um rapaz. Gritou,

chorou, foi parido numa casa
humílima, que não era um presépio,
mas ouvia-se o cantar dos galos,
o ladrar dos cães, o mugir

das vacas nos currais.
Era Dezembro, mês propício
a partos difíceis,
naturais.

© Domingos da Mota

22.12.16

Quarto soneto de Natal

Pudesse do Natal dizer que é mais
que o corre-corre, que a lufa-lufa,
que a passada célere demais,
que a mole humana que se adensa e arrufa
e satura nos amplos corredores,
nas ruas e nas lojas, nos mercados
(valendo-se da casa de penhores,
como outrora do livro de fiados);
pudesse do Natal dizer que é muito,
muito mais que o bulício que se sente
atraído pelo larvar intuito
de febre consumista, futilmente,
que faz da pretensão de ter e haver
o santo-e-senha contra o próprio ser.


© Domingos da Mota


19.12.16

ENTREVISTA

diz-lhe que estás ocupado
a entrevistar-te a ti mesmo
mesmo porque se não
o pões desde já porta 
fora tás quilhado vai
espiolhar-te apalpar-te
meter-te o dedo no cu
querer saber a quantas
quais mulheres ofereceste
teu recortado coração (pelo picotado)
em quantos quais sonetos meteste
o catorze e quantas quecas
te saíram pela ejaculatra
e ainda que livros levarias
para uma ilha deserta
se lá tivesses de empinar
o talo e fazê-lo florir sem a ajuda de ninguém
sequer de sexta-feira
apenas com os cinco dedos
que deus te deu para isso mesmo
mesmo porque tens de o pôr
já porta fora

Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio 2007

11.12.16

VARIAÇÕES DO BRANCO

Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva

Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco

Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.

Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.

Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:

As dunas plenárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.

Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata -- uma lembrança vã.

Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada

que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fossem as levíssimas pétalas, as vagas sílabas  de uma neve --
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros

das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá

Manuel Gusmão

migrações do fogo, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2004

10.12.16

ESFINGE

Olha mais uma vez     Traça de cor
o mapa desse rosto   as suas linhas tortas
tatuadas no vento     À tua espera
o seu meio-sorriso iluminando
corações como o teu
esses olhos translúcidos    a boca
que também tu beijaste e que hoje ainda
floresce no teu sangue    É  outro o mesmo
rosto
refém do tempo e no entanto igual
ao da primeira noite    ao da primeira
esfinge    O seu enigma
está cada vez mais perto    cada vez
mais longe


Fernando Pinto do Amaral

Manual de Cardiologia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 2016

8.12.16

PEDRAS

Morar no tempo, mesmo
soterradas, coexistir no ofício durável da
neutralidade: dólmen menir pirâmide ameia
agulha gótica ou soleira
humilde, espelho duradouro
de poderes e impudores, brasão
seixo alvo fonte ou pedra de
arremesso, de jogar, de roçar à espera de
fertilidade, de esmigalhar, urinar,
sepultar. Vértebra
do mundo.

Inês Lourenço

O JOGO DAS COMPARAÇÕES, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Outubro de 2016

4.12.16

THEREZA

Sem apelo
               no vórtice do
dia no
abandono do chão na
lâmina da
luz feroz


             fora da vida


desfaz-se agora
a minha doída
desavinda companheira

Ferreira Gullar

Obra Poética, Quasi Edições, Outubro 2003

3.12.16

NOITE

Do chão onde ontem enterrei
a noite irrompe como um garfo,
noite de hoje que eu não conheço
e todavia já 
noite velha que sei de cor.

Como um gesto premeditado,
nasce assim devagar,
tão nacional e tão leve,
tão primaveril pelas esquinas,
tão cheia de gatos nos telhados,
tão sem sono por ela adiante,
pequena noite habitual e casta
ligada ao dia por minúsculos grãos de café,
cores, vidros e frágeis cordões de fumo,
mas no entanto e sempre
tão principalmente noite.

José Manuel Simões

SOBRAS COMPLETAS, Prefácios de Helder Macedo e José de Sá Caetano, abysmo, Lisboa, Outubro 2016

1.12.16

[Um homem duplo cego]

Um homem duplo cego
aposta o limite. Um homem que se preze
presume uns degraus abaixo
do limiar de pobreza. Um homem
a ver gente vencida pelo silêncio,
a morrer aos bocados.
Um homem à beira
do fim.

Rui Baião

LADRADOR, Averno / 2012

30.11.16

MAL DE PÁTRIA

Se temos nove dez poetas
à escala europeia
ou só quatro ou mesmo  talvez
com muito boa vontade três

aflige-me bastante menos
que o problema do Serra:

quantas queijeiras restam
fiéis à rude bordaleira?
para onde vai Portugal?


                                                1985

Fernando Assis Pacheco


A MUSA IRREGULAR, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro 2006

27.11.16

fragmento primeiro

I


De que te vestes, corpo
a bando nado
da luz no teu país. De que te cobres?
Esquecido na água e sem
leitura. De que lado
passarás a viver
(ou, transigindo,
de que lado 
passarás a morrer, a clarear)?

Nuno Guimarães

OS CAMPOS VISUAIS, Iniciativas Editoriais, Lisboa, Maio de 1973

26.11.16

exercício espiritual

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

Mário Cesariny

CESARINY  UMA GRANDE RAZÃO, Assírio & Alvim, Lisboa, Março de 2007

24.11.16

A um ti que eu inventei

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesse partir.

António Gedeão

POEMAS ESCOLHIDOS, Antologia Organizada pelo Autor, Edições João Sá da Costa, Lisboa, Novembro de 1999

20.11.16

[Divido o fruto, a palavra dióspiro:]

Divido o fruto, a palavra dióspiro:
deus, na outra metade, o fogo. Sustém
a navalha, o gesto de talhar o garfo.
Observa os dióspiros, espantado: deus,
deus e o fogo, sabedoria dos gregos,
diante dos olhos em transitória nave.

Francisco Duarte Mangas

A FOME APÁTRIDA DAS AVES, Edição Modo de Ler

16.11.16

Os inquiridores

Está o mundo coberto de piolhos:
Não há palmo de terra onde não suguem,
Não há segredo de alma que não espreitem
Nem sonho que não mordam ou pervertam.

Nos seus lombos peludos se divertem
Todas as cores que, neles, são ameaças:
Há-os castanhos, verdes, amarelos,
Há-os negros, vermelhos e cinzentos.

E todos se encarniçam, comem todos,
Concertados, vorazes, no seu tento
De deixar, como restos de banquete,
No deserto da terra ossos esburgados.

José Saramago

Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Outubro de 1998

13.11.16

OS DOIS

Eu sou dois seres. 
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Manoel de Barros

POEMAS RUPESTRES, Editora Record, Rio de Janeiro . São Paulo, 2004

10.11.16

Onfaloscopia

O seu umbigo é o centro
do mundo    do universo
visto por fora ou por dentro
do direito       ou do avesso:

e sendo o centro do mundo
sempre que gira    rodando
soberbamente              rotundo
onde quer que esteja e quando

é sem dúvida        o maior
dos umbigos e  tão grande
que o universo    em redor
do seu umbigo se expande


© Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, Busílis, Dezembro 2018

9.11.16

[o ódio sopra uma bolha de desespero na]

o ódio sopra uma bolha de desespero na
vastidão do sistema do mundo do universo e explode
-- o medo enterra um amanhã sob o desgosto
e o ontem chega mais verde e jovem

o prazer e a dor são apenas aparências
(um a si se mostrando, a si se escondendo outro)
o único e verdadeiro valor da vida nenhum é
o amor faz a pequena diferença das coisas

e se aqui vier um homem para receber da senhora morte
o agora sem nunca e a primavera sem inverno?
ela tecerá esse espírito com os seus próprios dedos
e dar-lhe-á nada (se ele não cantar)

como há tanto mais do que o suficiente para nós os dois
querida          E se eu cantar tu és a minha voz,

E.E. Cummings

livrodepoemas, tradução, introdução e notas Cecília Rego Pinheiro, Assírio & Alvim, Lisboa, Junho 1999

2.11.16

OS OLHOS DAS CRIANÇAS

Estes olhos vazios e brilhantes
que na criança se abrem para o mundo,
não amam,
não temem,
não odeiam,
não sabem como a morte existe.

São terríveis.
Porque a vida é isto.

O amor, o medo, o ódio, a mesma morte,
e este desejo de possuir alguém,
os aprendemos. Nunca mais olhamos
com tal vazio dentro das pupilas.

São terríveis.
Porque a vida é isto.

1963.

Jorge de Sena

PEREGRINATIO AD LOCA INFECTA, 70 POEMAS E UM EPÍLOGO, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969

28.10.16

OS DOIS POETAS

Na cidade branca
Entre as migalhas de pão
Habitam dois poetas
O primeiro é negro -- lua quebrada
De que as baleias procuram os restos

O outro é branco -- tal uma criança
Dorme todas as noites
Com uma serpente negra

Adonis

O Arco-Íris do Instante, Antologia Poética, Introdução, selecção e tradução de Nuno Júdice, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Outubro de 2016

27.10.16

CARTA A ADONIS, POETA SÍRIO-LIBANÊS

5.

Querido Adonis, trouxeram-me um retrato
              teu, pescado na Internet.
Não há um corte --
entre a tua poesia e o que promete
              a tua imagem é palavra cortada
à feição, como a fruta
              que incita ao roubo.
Um borrifo de Deus  --
               e o mais desassombro.

António Cabrita

Combate de Flautas, &etc, Lisboa, Setembro de 2003

19.10.16

A avó

Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pêlo dele preto e brando

Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela

Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro

Manuel António Pina

OS LIVROS, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro 2003

28.9.16

Síntese e remorso

Acerca da fragilidade
De uma criança
Nada diremos.
Acerca da sua força e das imagens
Nocturnas que se espelham
Como o adversário se espelha
Na polida solidez do escudo,
Sobre isso talvez nos seja dado
Dizer o que não merece mais
Do que síntese e remorso.

Luís Quintais

Eufeme, magazine de poesia, n.º 0 (julho/setembro de 2016) Edição e coordenação: Sérgio Ninguém

22.9.16

AO CONTRÁRIO DE ULISSES

Infeliz quem, ao contrário
de Ulisses, volte a casa
e nem sequer um cão, nem
um cão morto sequer, ladre.

Pedro Mexia

Menos por Menos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Abril de 2011

21.9.16

O CÃO DE ULISSES

(glosa ou quase)


                                                                           a Lêdo Ivo,
in memoriam


Como pode um Poeta ser cego
(perguntava Lêdo Ivo)
se a Poesia é a arte de ver? Ele soube-o dormindo
ou acordado, e transpondo as pontes por Sevilha.
Árgus, o cão de Ulisses, confirmá-lo-ia
como fez com seu dono. Lêdo sabia-o.
E qualquer um dos seus vinte e dois cachorros
cuja privacidade sempre respeitou.
Como pode um Poeta ser cego
(perguntava Lêdo Ivo)
e Homero existido? Lêdo sabia-o. Como Borges
sempre soube, porém, não há notícia se o portenho
alguma vez teve cão. Por essa razão,
Lêdo escutou os latidos de todos os cachorros,
não fosse o caso de um (entre eles) ser o mito
-- O cão de Ulisses, o verdadeiro.

Ivo Machado

A CIDADE DESGOVERNADA, Insubmisso Rumor, Porto, Fevereiro de 2016

20.9.16

O CÃO DE POMPEIA

O cão que vi prostrado na ferrugem do pêlo eriçado,
Não era osso a fugir, calcinado.
Mordiam-lhe as pulgas e o flash, mas estava vivo.
(Pelo menos a respiração tumefaz-se empoeirada.)
O chão seco em que caia o seu repouso.
Nada se parecia com a lava.
<Este cão, a vida que continua em Pompeia, que sempre continua.>

José Emílio-Nelson

BELEZA TOCADA  OBRA POÉTICA  1979-2015, Abysmo, Lisboa, Setembro de 2016

9.9.16

Campo visual

Não sei como dizê-lo, mas se vejo
naquela indiferença um não sei quê
que desvela um sintoma de desejo,
pois afogueia o rosto sempre que
persiste de viés quando desvia
num súbito relance o seu olhar
que mesmo sem dar conta, denuncia
o quanto gostaria de se dar,
de se abrir, envolver, se vejo isto
e mantenho a reserva, o segredo,
não vá um simples gesto, a que resisto,
ser logo distorcido e haver um dedo
duro que dissemine aos quatro ventos
presunções, devaneios, andamentos

© Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, Busílis, Dezembro 2018

7.9.16

MADRIGAL

Aquela enorme frieza
Não entristeça ninguém...
Ela estende o seu desdém
À sua própria beleza:

Quando, solta do vestido,
Sai da frescura do banho,
O seu cabelo castanho,
Esse cabelo comprido,

(Que frio, que desconsolo!)
Deixa ficar-se pendente,
Em vez de, feito serpente,
Ir enroscar-se-lhe ao colo!

Camilo Pessanha

CLEPSIDRA E OUTROS POEMAS, Círculo de Leitores, Lda., Setembro de 1987 

28.8.16

Sem erros de paralaxe

De anjo só tinha a cara;
as asas, quando as abria,
pareciam de ave rara,
uma ave que subia
e descia quase a pique
e com tal velocidade,
mais veloz que o Sputnik,
essa outrora novidade
das que atravessam os céus
e percorrem os espaços
(sem serem anjos nem deuses),
mas que desdobram os braços
em busca doutras galáxias,
sem erros de paralaxe.


© Domingos da Mota


27.8.16

Duas chávenas

Tínhamos duas chávenas
em forma de meia lua
e uma triangular.
Quando alguém ia lá a casa
bebíamos os dois pelas meias luas
o convidado pela triangular.
Era uma regra da casa
nem escrita
nem pronunciada
apenas pressentida.
Até que alguém apareceu
e trocou os sítios das chávenas
a mim coube-me a triangular.
As regras eram mesmo assim
para quebrar
como as tartes
como as chávenas.
Será que ainda as podemos colar?

Ana Paula Inácio

2010-2011, Averno, Junho de 2011

21.8.16

OS LAGARTOS AO SOL

Expõe ao sol a perna escalavrada, 
no Jardim do Príncipe Real,
uma velha inglesa. Não há nada
tão bonito (pra mim), so natural.

E conversamos: «Helioterapia
medicina barata em Portugal».
Accionista do sol, ajudo à missa:
«But, não muito, que senão faz mal».

Gozosos, eu e a velha, ali ficamos
à mercê de meninos e marçanos.
Ela, a inglesa, de perninha à vela;
e eu, o português, à perna dela.

Talvez que, se o Briol nos conservara,
alguém um dia nos ajardinara.

Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007

18.8.16

OUTRA

Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo:  -- a luz do dia!
-- Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
-- Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água -- música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
-- Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

António Botto

Eugénio de Andrade, Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Campo das Letras - Editores, S. A., Porto, Novembro de 1999

13.8.16

PENSANDO MELHOR

Mesmo em tardes muito quentes de Verão,
há sempre uma ave aventureira
que sobrevoa a terra.

(Pensando melhor, o que de facto há
é terra, apenas terra -- que a seu tempo
há-de sobrevoar o voo das aves.)

A. M. Pires Cabral

gaveta do fundo, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Novembro de 2013

11.8.16

EXERCÍCIO 24

o céu é uma floresta

e por vezes
quase no fim do dia
arde

Paulo José Miranda

EXERCÍCIOS DE HUMANO, abysmo, Lisboa, Maio 2014

10.8.16

LAVOISIER

Na poesia, 
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.

Carlos de Oliveira

TRABALHO POÉTICO, Livraria Sá da Costa Editora, 3:ª edição, Lisboa, 1998

9.8.16

estação

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho


Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça

Mário Cesariny

Pena Capital, Assírio & Alvim, Lisboa, Março 1999

2.8.16

O TABERNÁCULO

O tabernáculo fosco deste canto
a carica deitada no centeio
a reduzida mesa a que me encosto
do lado do passeio
Estar a milhas do marquês de Sade
Enfim ó meu vizinho terra mansa
Havemos de aleitar esta criança
democraticamente sem alardes
A cama há muito que não é refeita
(Falta a coragem de não ser turista)
      Sei dum quintal moreno
      Onde se criam pássaros
             Sem alpista

José Afonso

Textos e canções, 3.ª edição revista, Organização Elfriede Engelmayer, Relógio D'Água Editores, Lisboa, Outubro de 2000

10.7.16

LUA

Mamífero metálico. Nocturno.


Vê-se-lhe 
o rosto comido por um acne.


Sputniks e sonetos.


Nicolás Guillén

O GRANDE ZOO, tradutor, Carlos Pereira, Editora Centelha - Promoção do Livro, S.A.R.L., Coimbra, Novembro de 1973

5.7.16

PASSAGEIRO

Sou um passageiro.

Isto em bom português
quer dizer: estou de passagem.
Virá um dia em que caduque
a minha validade.
Só o comboio é perene,
inextinguível.

Por isso é uma gratuita 
crueldade a voz do altifalante
dizer de vez em quando:
-- Senhores passageiros, isto.
-- Senhores passageiros, aquilo.

Passageiro.

Caramba,
não preciso que mo lembrem.

Não me enterrem mais
a coroa de espinhos:
já me está apertada,
fundida com o crânio quanto baste.

A. M. Pires Cabral

QUE COMBOIO É ESTE, Edição Teatro de Vila Real, Dezembro de 2005

28.6.16

INDÍCIOS DE OIRO

7


Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
    Pilar da ponte de tédio
    Que vai de mim para o Outro.

                  Lisboa, Fevereiro de 1914

Mário de Sá-Carneiro

INDÍCIOS DE OIRO, Guimarães Editores, Lisboa, Novembro de 2009

24.6.16

Janelas altas

Quando vejo um casal de miúdos
E percebo que ele a anda a foder e ela
Usa um diagrama ou toma a pílula
Sei que isto é o paraíso

Com que os velhos sonharam toda a vida --
Compromissos e gestos postos de lado
Que nem uma debulhadora fora de moda,
E toda a gente a descer pelo escorrega,

Interminavelmente, para a felicidade. Será
Que alguém olhou para mim, há quarenta anos,
E pensou: Isso é que vai ser boa vida;
Nada de Deus, ou de suores nocturnos,

Ou medo do inferno, ou ter de esconder
Do padre aquilo em que se pensa. Ele
E a malta dele, c'um raio, hão-de ir todos pelo escorrega
Abaixo, livres que nem pássaros? E de imediato,

Em vez de palavras, vêm-me à ideia janelas altas:
O vidro que acolhe o sol, e mais além
O ar azul e profundo, que não revela
Nada e está em lado nenhum e não tem fim.

Philip Larkin

Janelas altas, tradução e introdução de Rui Carvalho Homem, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2004

19.6.16

Nas cidades do sul

Nas cidades do sul
há violência e há excesso,
de semente.
Estalam os rios e foge a água.
O corpo, encortiçado, racha.


Lendas vêm de há séculos assoreando
as margens.
E quando à boca de um poço vamos
provar o nosso eco,
águas puras irrompem,
noutra língua.

Luiza Neto Jorge

A LUME, Assírio & Alvim, Maio de 1989

16.6.16

HAI-KAI

Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio d'asas.

-- Como quereis o equilíbrio?

David Mourão-Ferreira

LIRA DE BOLSO, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1969

15.6.16

[Vozes que a noite arrasta]

Vozes que a noite arrasta
inapreensíveis passagens
para o que é alto
puro e delicado
determinando-te
a partir de outra obscuridade

Luís Falcão

Bruma Luminosíssima, Artefacto, Maio de 2016

13.6.16

Qualquer música

Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!

Qualquer música -- guitarra,
Viola, harmónio, realejo...
Um canto que se desgarra...
Um sonho em que nada vejo...

Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida...
Que eu não sinta o coração!

Fernando Pessoa

POEMAS DE FERNANDO PESSOA, Selecção, prefácio e posfácio de Eduardo Lourenço, VISÃO JL, Lisboa, Fevereiro de 2006

11.6.16

PALATINO

3.

Toda a maldição vomita a luz
pelos dedos -- o desejo das trevas
chamando à morte a única oração.

João Rasteiro

A DIVINA PESTILÊNCIA, Assírio & Alvim, Lisboa, Março 2011


10.6.16

CAMÕES E A TENÇA

Irás ao paço. Irás pedir que a tença
Seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce

Em tua perdição se conjuraram
Calúnia desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou mais ser que a outra gente

E aqueles que invocaste não te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto

Irás ao paço irás pacientemente
Pois não te pedem canto mas paciência

Este país te mata lentamente

Sophia de Mello Breyner

GRADES, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1970

8.6.16

DENÚNCIA DE CONTRATO

foi tudo tão depressa.
nem tempo tive para lavrar as mãos
e assinar, de cruz, um empréstimo de pão.

fiquei sem dias para trocar com a morte.

Emanuel Jorge Botelho

Telhados de Vidro N.º 20 . Setembro . 2015

5.6.16

PRELÚDIO

Partem os altos choupos, 
mas deixam o seu reflexo.

Partem os altos choupos,
deixando apenas o vento.

O vento na sua mortalha
jaz debaixo do céu.

Mas não levou os seus ecos,
que flutuam sobre os rios.

O mundo dos pirilampos
invadiu minha lembrança.

E um coração pequeno
vai-me brotando nos dedos.

Federico Garcia Lorca

TRINTA E SEIS POEMAS E UMA ALELUIA ERÓTICA, Tradução de Eugénio de Andrade, Editorial Inova Limitada, Porto, Janeiro de 1970

31.5.16

NADA FALTA

Ao cair da tarde,
passa lá fora
a melancólica,
antiquíssima flauta
do amolador.

Vai-se afastando
e deixando atrás de si,
como uma cascata,
a toada 
magoada e urgente
da noite que vem
e promete ser
varrida de água
e de vento,
fatal para vagabundos
e para espíritos aflitos
ou afligidos.

Mas
entre os múltiplos golpes
executados por aí
com um cutelo de dois gumes
de fabrico euro-alemão,
esta tormenta,
no ritmo da flauta
anuncia sobretudo a queixa
de mais um trabalho
em liberdade e em gosto
prestes a morrer.

Parece
que mais ninguém a ouve,
e,
pelo silêncio que fica,
parece até
que já não há ninguém vivo na rua.
Nem os cães...
Estarão 
a ver
as inundações
na América...

-- Os cães também?

Claro, nem ladram.

A televisão
inunda-lhes a casa lá longe
e eles gostam.
Também lhes afia as facas
que trazem na cabeça
e todos gostam.
Não precisam de amolador.
Não precisam de mais nada.

Alberto Pimenta

nove fabulo, o mea voz
de novo falo, a meia voz, Pianola 12, Lisboa, Março de 2016