29.8.14

A máscara fatal de Messalina

     Eu vi gelar as putas da Avenida
       ao griso de Janeiro e tive pena

       Fernando Assis Pacheco



Eu vi andar as pegas na Avenida

num tórrido Verão, ardia Agosto.
Se aquilo que faziam era a vida,
mas que puta de vida! Quanto rosto

sumido e consumido nessa lida,

à mercê do ferrete, e do sol-posto
dissimulado sob a perseguida
labuta marginal. A contragosto,

dei por mim a olhar, a ver de perto

um vulto que exibia o passo incerto
e arrastava os pés, de esquina em esquina.

Mas perdi o seu rasto, a sua sombra;

vislumbrando, a desoras, na penumbra,
a máscara fatal de Messalina.


© Domingos da Mota


Pequeno tratado das sombras, Busílis, Dezembro 2018

27.8.14

AS NOVAS CRIATURAS I

                                                                      a Herberto Helder


Ama, simplesmente ama, se o futuro te angustia,
talvez desejes a terra ao céu,
em breve serás somente semente e língua,
asas debruçadas em inventários.


                     *

Assim ressuscitaria a flor do corpo,
talvez, se não ressuscitasse criatura de artifícios,
como quem, sendo eco, mordesse a terra,
mas como a cobiçaria?

                     *

E cobiçando-a como me entregaria
ao avulso capricho dos novos felinos: lágrimas
como quem desvive a dor
em troca da nudez que Dante não ousou explicar?

João Rasteiro

PEQUENA RETROSPECTIVA DA ENCENAÇÃO, PEQUEÑA RETROSPECTIVA DE LA PUESTA EN ESCENA, Lastura, Enero, 2014

24.8.14

O PAR QUE ME PARECE

   Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
   aquela língua sem fim
feita de aís e de aquis.
   Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
   alguma coisa de hitita,
praia de mar de Java.
   Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
   Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
   Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
   Gritos eram os únicos.
O resto, ia pro lixo.
   Dois leos em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
   eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.

Paulo Leminski

POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX DOS MODERNISTAS À ACTUALIDADE, Selecção, introdução e notas, Jorge Henrique Bastos, Edições Antígona, Lisboa, Fevereiro de 2002

21.8.14

QUE VERGONHA, RAPAZES!

Que vergonha, rapazes! Nós pràqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no «diz que»
e a desnalgar a  fêmea («Vist'? Viii!»).

Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.

Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço a rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:

Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, Sr. O'Neill! E... as varizes?

Alexandre O'Neill

DE OMBRO NA OMBREIRA, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969

SALMO

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direcção
a ti.

Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com 
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-de-céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho.

Paul Celan

SETE ROSAS MAIS TARDE, Antologia Poética, Edição Bilingue, Selecção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno, Edições Cotovia Lda., Lisboa, 1996

13.8.14

DOBRADA FRIA

Na carruagem-restaurante tive
a mesma sorte do outro poeta:
serviram-me a viagem
como dobrada fria.

Mas não pude protestar:
foram rasgando folha a folha o livro
de reclamações,
para embrulhar as sandes.

E comi frio.

Ah, que comboio é este,
que comboio, que combate
tão perdido.

A. M. Pires Cabral

QUE COMBOIO É ESTE, Edição Teatro de Vila Real, Dezembro de 2005

12.8.14

AUTOCATACLISMOS

1


entram no ninho por um lado              põem os ovos
saem por outro                                    tiram os que lá estavam
cucos profissionais                             são maioria absoluta


Alberto Pimenta

AUTOCATACLISMOS, Pianola, Lisboa, 2014

10.8.14

O MENOS VENDIDO

Custa muito
pra se fazer um poeta.
Palavra por palavra,
fonema por fonema.
Às vezes passa um século
e nenhum fica pronto.
Enquanto isso,
quem paga as contas,
vai ao supermercado,
compra o sapato das crianças?
Ler seu poema não custa nada.
Um poeta se faz com sacrifício.
É uma afronta à relação custo-benefício.

Ricardo Silvestrin

colhido no blogue, Rua das Pretas.

9.8.14

[hoje, dia de todos os demónios]

hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt... uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio

Mário Cesariny 

CESARINY UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007

8.8.14

NA PRAIA

Raça de marinheiros, que outra coisa vos chamar,
senhoras que com tanta dignidade
à hora que o calor mais apertar
coroadas de graça e majestade
entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?

Ruy Belo

HOMEM DE PALAVRA(S), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Janeiro de 1970

6.8.14

CEDO OU TARDE

Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.

Albano Martins

ESCRITO A VERMELHO, Campo das Letras, Editores, S. A., Porto, 1999

O ÚLTIMO POEMA

Não sei quem me manda a poesia
nem se Quem disso a chamaria.

Mas quem quer que seja, quem for
esse Quem (eu mesmo, meu suor?),

seja mulher, paisagem ou o não
de que há preencher os vãos,

fazer, por exemplo, a muleta
que faz andar minha alma esquerda,

ao Quem que se dá à inglória pena
peço: que meu último poema

mande-o ainda em poema perverso,
de antilira, feito em antiverso.

João Cabral de Melo Neto

Olhos de Orfeu, DOZE POETAS NO PORTO, organização e prefácio de António Roberval Miketen, Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Dezembro de 1985

1.8.14

MÉTRICA

     para o António Barahona


Sufi-
ciência de mão: o saber
cantar o sôpro, partir
com igual lume e rigor,
engenho e arte,
o verso, a sílaba, o pão.

Ricardo Álvaro

Telhados de Vidro, N.º 19 . Maio . 2014, Averno, Lisboa