28.10.23

As Bombas

Não há mais palavras a dizer
Só ficámos com as bombas
Que estouram dentro das nossas cabeças
Só ficaram as bombas
Que nos chupam o último sangue
Só ficámos com as bombas
Que dão lustro aos crânios dos mortos


Fevereiro 2003


Harold Pinter

Guerra, Tradução de Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, Edições Quasi

15.10.23

PERGUNTAS DO AMANHECER

– Minha mãe, minha mãe
o pão é vermelho porquê?
– Porque o trigo está
sangrando,
filho meu,
um sangue que não se vê...


10 de Março, 2022


Yvette K. Centeno

Ventanias
, edição Eufeme, Leça da Palmeira, Setembro de 2023

11.10.23

!

Porque vivemos o que vivemos
porque vemos o que vemos
porque fazemos o que fazemos
passarei a pente fino todas as folhas
jornais, poemas, artigos, cartas
boletins, discursos
e eliminarei deles
todos os pontos de exclamação


Murid Al-Barghuti

Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
, Selecção e tradução de Albano Martins, Asa Editores, S. A., Porto, Fevereiro de 2004

10.10.23

TEMPESTADE

Nos cordames as gaivotas
escutam o relâmpago que tomba com os cabos da âncora
para o leito do mar.

Trovão sobre o Carmelo.
Seu eco na raiz dos ciprestes.
Na orelha das cavernas.

David Rokeah

                   Tradução: J. Guinsburg / Zulmira Ribeiro Tavares

ROSA DO MUNDO 2001 POEMAS PARA O FUTURO, Assírio & Alvim, Lisboa, Abril 2001: 1556

9.10.23

A Era dos Vivos

Os vivos
não desistem
de viver
Os mortos também

Mohammed Al-As'Ad

Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea, Selecção e tradução de Albano Martins, Asa Editores, S. A., Porto

8.10.23

Bilhete de Identidade



regista lá:
eu sou árabe
e o número do meu B.I. é o cinquenta mil
e os meus filhos são oito
e o nono chegará depois do verão.
e então, isso chateia-te?

regista lá:
eu sou árabe
e trabalho com um bando de operários numa pedreira
e os meus filhos são oito.
trago-lhes das pedras uma
fatia de pão, e roupas e cadernos
e não peço caridade à tua porta
e não me encolho na tijoleira da tua entrada.
e então, isso aborrece-te?

regista lá:

eu sou árabe
eu sou um nome sem título,
paciente num país onde todos
vivem em convulsões de fúria.
as minhas raízes
rasgaram a terra antes do nascer dos tempos
e antes do abrir das eras
e antes do cipreste e da oliveira
e antes do despontar da erva.

o meu pai é da família do arado,
não de grandes senhores,
e o meu avô era lavrador,
sem educação, sem linhagem.
educa-me o assomar do sol antes da leitura dos livros,
e a minha casa é a barraca do caseiro,
feita de galhos e de canas.
e então, agrada-te a minha condição?
eu sou um nome sem título!

regista lá:
eu sou árabe
e a cor do meu cabelo é negra, cor de carvão
e a cor dos meus olhos é castanha.
e os meus sinais particulares são
sobre a cabeça um cordão em cima de uma cúfia,
e a palma das minhas mãos rija como um penedo
arranha ao toque.
e a minha morada:
eu sou de uma aldeia perdida, esquecida
de ruas sem nome,
e os seus homens estão todos no campo e na pedreira.
e então, isso aborrece-te?

regista lá:
eu sou árabe
tu roubaste os pomares dos meus avós
e a terra que lavrei
eu e os meus filhos todos,
e não nos deixaste nada, nem a nenhum dos meus netos,
senão estes penedos,
pois vai o vosso governo
levá-los, como se diz?
portanto
regista lá
à cabeça da primeira página:
eu não odeio os homens
e não ataco ninguém,
mas se tiver fome
como a carne do meu usurpador.
cuidado
cuidado
com a minha fome
e com a minha fúria.


Mahmoud Darwish


UM ÁRABE É UM ÁRABE, É UM ÁRABE, UM ÁRABE, breve antologia de poesia árabe, textos introdutórios, Daniel Ferreira e Joana Santos, versões e traduções, André Simões e Joana Santos, editora contracapa, 4.ª edição, Vila Meã, Setembro de 2023

1.10.23

ARRABALDE

Sabes do destino das ruas mais distantes
e aí persistem plenas as ausências
moradas de um abandono iluminado
Seguimos as pisadas que se perdem
o canto rouco das torrentes da poeira
demolidos portões, a ferrugem das passagens
Nos teus olhos outros olhos que se afastam
ao longe noutro arrabalde
e tudo disposto para sempre sem lugar


José Manuel Teixeira da Silva

Os Pequenos Nós da Tempestade, Língua Morta, Abril de 2023