31.5.16

NADA FALTA

Ao cair da tarde,
passa lá fora
a melancólica,
antiquíssima flauta
do amolador.

Vai-se afastando
e deixando atrás de si,
como uma cascata,
a toada 
magoada e urgente
da noite que vem
e promete ser
varrida de água
e de vento,
fatal para vagabundos
e para espíritos aflitos
ou afligidos.

Mas
entre os múltiplos golpes
executados por aí
com um cutelo de dois gumes
de fabrico euro-alemão,
esta tormenta,
no ritmo da flauta
anuncia sobretudo a queixa
de mais um trabalho
em liberdade e em gosto
prestes a morrer.

Parece
que mais ninguém a ouve,
e,
pelo silêncio que fica,
parece até
que já não há ninguém vivo na rua.
Nem os cães...
Estarão 
a ver
as inundações
na América...

-- Os cães também?

Claro, nem ladram.

A televisão
inunda-lhes a casa lá longe
e eles gostam.
Também lhes afia as facas
que trazem na cabeça
e todos gostam.
Não precisam de amolador.
Não precisam de mais nada.

Alberto Pimenta

nove fabulo, o mea voz
de novo falo, a meia voz, Pianola 12, Lisboa, Março de 2016

24.5.16

Insónia

Vira a noite
do avesso: a insónia
desalmada esmiúça

as sombras a pulsar
perdidas: despenteia
as estrelas, desgrenha,

desmesura o peso
e o pavor das horas
desmedidas.


© Domingos da Mota


19.5.16

SETE CANÇÕES DE DECLÍNIO

7


Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
-- Caiu-me a Alma na rua,
E não a posso ir apanhar!

Mário de Sá-Carneiro

EDOI LELIA DOURA antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por HERBERTO HELDER, Assírio & Alvim, Janeiro de 1985

9.5.16

Uma Viagem no Outono

*

Imensa, esta gente reconduz
a catástrofe ao ruído de folha sobre folha,
mas a vingança dos mortos
é uma faca mergulhada na terra, o gume
iluminado da raiz.

Rui Nunes

Nocturno Europeu, Relógio D'Água Editores, Novembro de 2014