24.11.19

HOMEM

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.

António Gedeão

POESIAS COMPLETAS (1956-1967), 3.ª edição, Portugália Editora, Lisboa, Janeiro de 1971

18.11.19

O regresso

Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

Manuel António Pina

COMO SE DESENHA UMA CASA, Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro 2011

7.11.19

La Maja Desnuda

Ao fundo da sala olhava-me humana e natural
como teria olhado Goya com os braços nus erguidos
atrás da nuca. Todo o corpo
desvendado e sem sombras mitológicas
a esconder a penugem do púbis. Por essa ousadia
inaugural da arte do nu bramiram inquisições
e até outra tela com o nu vestido
cumulou a penitência do herético pintor para ocultar
o inicial desbragamento que permaneceu oculto
mais de um século. Hoje as duas
telas estão na mesma sala descobrindo
a incontáveis visitantes
a impotência das mordaças da Arte.


Madrid, Museo del Prado

Inês Lourenço

Eufeme n.º 13 Magazine de Poesia (Outubro/Dezembro 2019)

1.11.19

[há bens]

há bens
de primeira necessidade
que têm prazo de validade
os corações
por exemplo
este quase não treme
nas tuas mãos está gasto

Alberto Serra

bens de primeira necessidade, selecção e organização de Francisco Duarte Mangas, Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Setembro de 2019