20.2.22

DA PRIMAVERA

(imitado de Sículo)


Da primavera   uma constância incerta:
umas vezes   sorri   encantadora
serenamente o rosto juvenil,
outras vezes cobrindo só com névoas,
com chuvas e relâmpagos terríveis
a terra inteira   numa aterradora
confusão entre coisas, gentes, bichos.


António Salvado


ECOS DO TRAJECTO seguido de PASSO A PASSO, Edição Ricardo Neves Produção Lda. - A. 23 Edições, 2014

11.2.22

Pára de repente o rio

23.


Pára de repente o rio
na ponte do caçador

volta rio volta à fonte
vai chamar o meu amor

tem nas mãos sete navalhas
com sangue de cada cor

volta rio volta à fonte
vê se vês o meu amor

tem dois sacos nas ilhargas
leva ali prazer e dor

volta rio volta à fonte
traz contigo o meu amor

olha com corvos no olhos
os caminhos sem redor

volta rio volta à fonte
que secou no meu amor


Helder Macedo


RESTA AINDA A FACE, Escolha e posfácio de Paulo José Miranda, abysmo, Lisboa, novembro 2015

9.2.22

SUPOSTA NOTA DE DESPEDIDA DE GELI RAUBAL DIRIGIDA A SEU TIO ADOLF HITLER

NÃO estou descrente, tio, dos nossos jogos
de guerra, mas não me sei comportar
como um adversário aguerrido quando me apontam
uma arma ao coração para que obedeça
- para além dos limites, só eu hei-de saber
do alvoroço da minha submissão e a coragem
necessária para que a mim mesma possa conferir
o veredicto do desassossego. Assim, serei eu
a apontar a arma ao meu peito e a disparar,
a saber que o relatório do Instituto de Medicina
Legal confirmará o meu suicídio, embora só quisesse
escapar ao terror que me provocas.


Amadeu Baptista


UM POUCO ACIMA DA MISÉRIA
, Edicións Espiral Maior, S. L. - A Coruña - Galicia - 2014

8.2.22

Menino que vais na rua

          (Serenata cínica para o Bettencourt cantar:)

Menino que vais na rua,
não cantes nem chores: berra!
Cospe no céu e na lua
e aprende a pisar a terra.

Aprende a pisar o mundo.
Deixa a lua aos violinos
dos olhos dos vagabundos
e dos poetas caninos.

Aprende a pisar a vida.
Deixa a lua às costureiras
- pobre moeda caída
de quem não tem algibeiras.

Aprende a pisar no chão
o silêncio do luar
sem sentir no coração
outras pedras a gritar.

Pisa a lua sem remorsos,
estatelada no solo...
Não hesites! Quebra os ossos
dessa criança de colo.

Pisa-a, frio, com coragem,
sem olhos de serenata:
que isso que vês na paisagem
não é ouro nem é prata.

Menino que vais na rua,
não chores, nem cantes: berra!
ou, então, salta prà lua
e mija de lá na terra.

José Gomes Ferreira

M. Alberta Menéres e E. M. de Mello e Castro, Antologia da Poesia Portuguesa, 1940-1977, 1.º Volume, Círculo de Poesia Moraes Editores, Lisboa, 1979

5.2.22

[Mais cedo ou mais tarde]

Mais cedo ou mais tarde
o silêncio virá
perguntar por ti.

Albano Martins

Com as Flores do Salgueiro, Edições Universidade Fernando Pessoa, Porto, 1995

1.2.22

SANTO E SENHA

Desengaçar a alegria
do chato amável mundo


                                      Lisboa
                                      VII-91

Fernando Assis Pacheco

Respiração Assistida, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro 2003