Não é fácil ser poeta o tempo inteiro.
Eu, por exemplo, nem cinco minutos
por dia, pois levanto-me tarde e primeiro
há que lavar os dentes, suportar os incisivos
à face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos culpados,
assistir de olhos frios à refrega dos centauros.
E chegar à noite a casa para a prosa do jantar,
o estrondo das notícias, a louça por lavar.
Concluindo, só pelas duas da manhã
começo a despir o fato de macaco, a deixar
as imagens correr, simulacro do desastre.
Mas entretanto já é hora de dormir.
Mais um dia de estrume para roseira nenhuma.
José Miguel Silva
ÚLTIMOS POEMAS, Averno, Junho de 2017
29.7.17
20.7.17
Toada dos batráquios
Estes batráquios,
sapos e rãs,
sapos e rãs,
velhos terráqueos,
arrastam fãs,
mesmo de louça,
com pés de barro
mesmo de louça,
de louça fina,
há quem os ouça
a coaxar, e com verrina;
com pés de barro
sobre os balcões,
de olho avaro,
camaleões,
são uns racistas
torpes, xenófobos
e arrivistas.
Fossem macrófagos
contra as bactérias,
as inimigas.
Mas os batráquios
são candidatos:
.
nem-sei-que-diga.
© Domingos da Mota
© Domingos da Mota
19.7.17
Poemas Quotidianos
10
Depois das 7
as montras são mais íntimas
A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa
E a luz
torna mais belo
e mais útil
cada objecto
António Reis
Poemas Quotidianos, Prefácio Fernando J. B. Martinho, Posfácio Joaquim Sapinho, Lisboa, Tinta-da-China, Julho de 2017
15.7.17
Não o chamo pelo nome
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
José Régio
Já deu o que tinha a dar,
dizem alguns, por favor,
o tempo está a esgotar-se,
venha de novo o rigor,
venha quem ouse tomar
sem pudor nem contrição
(Se deu o que tinha a dar,
olhando os que nada deram,
mas tiraram sem parar
sem cuidar dos que sofreram),
entre quem deu, mesmo pouco,
e quem tirou quase tudo,
só mesmo se fosse louco
votaria num testudo
e arrogante unhas-de-fome
com redobrados intuitos
(não o chamo pelo nome
pois o diabo tem muitos).
© Domingos da Mota
Me levam meus próprios passos...
José Régio
Já deu o que tinha a dar,
dizem alguns, por favor,
o tempo está a esgotar-se,
venha de novo o rigor,
venha quem ouse tomar
sem pudor nem contrição
medidas para salvar
a crença na expiação.
(Se deu o que tinha a dar,
olhando os que nada deram,
mas tiraram sem parar
sem cuidar dos que sofreram),
entre quem deu, mesmo pouco,
e quem tirou quase tudo,
só mesmo se fosse louco
votaria num testudo
e arrogante unhas-de-fome
com redobrados intuitos
(não o chamo pelo nome
pois o diabo tem muitos).
© Domingos da Mota
12.7.17
A vida de cada um
A vida de cada um
tem duas eras:
antes
e depois
da morte da Mãe
Teresa Rita Lopes
CICATRIZ, Editorial Presença, Lisboa, 1996
tem duas eras:
antes
e depois
da morte da Mãe
Teresa Rita Lopes
CICATRIZ, Editorial Presença, Lisboa, 1996
3.7.17
MIOPIA
São a janela para a alma, tu disseste, esses olhos;
e que dizes agora, quando a luz os esculpe,
células se dispersam, e a miopia parece sonho,
cortina, sombra de sombra, velo que a luz
fez violentar, lembrado apenas?
Eu atravesso a estrada sem óculos;
da ciência, a sua crença recuperada.
Tu acenas, nitidamente.
Luís Quintais
A NOITE IMÓVEL, Assírio & Alvim, Março de 2017
e que dizes agora, quando a luz os esculpe,
células se dispersam, e a miopia parece sonho,
cortina, sombra de sombra, velo que a luz
fez violentar, lembrado apenas?
Eu atravesso a estrada sem óculos;
da ciência, a sua crença recuperada.
Tu acenas, nitidamente.
Luís Quintais
A NOITE IMÓVEL, Assírio & Alvim, Março de 2017
Subscrever:
Mensagens (Atom)