27.2.15

PERIGO DE VIDA

É grande o risco da palavra no tempo
maior mesmo talvez que no mar
Eu fui à margem do dia despedir um amigo
e não houve no cais
iniciativa verbal que edificasse
uma só tenda para o nosso coração
Éramos peregrinos
que deixam a saudade de turistas
ausentes na rua de outono
Morríamos contra a curva dos dias
a morte rotativa e provisória

Tivesse a própria palavra lábios
e nenhum clima poderia
arrefecer-lhe o coração
Tivesse ela lábios e não seria
tão grave o risco no tempo e no mar

Ruy Belo

AQUELE GRANDE RIO EUFRATES, Introdução de José Tolentino Mendonça, Editorial Presença, Lisboa, Dezembro, 1996

26.2.15

DESCOBRIREMOS O NOSSO MOVIMENTO

Descobriremos o nosso movimento
quase uma folha,
ou quase uma pupila
que se inclinasse e só nos desse o tempo
de uma sombra passar e entrar no olvido.
Mas, sobretudo, veremos
pensar-se um ar antigo
que vem ao movimento
quando mover-se nem sequer é escrito.

Fernando Echevarría

POESIA, 1956-1979 - SOBRE AS HORAS [1963], Edições Afrontamento, Porto, 1989

24.2.15

PELE

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele

David Mourão-Ferreira

OBRA POÉTICA (1948-1988), Introdução de Eduardo Prado Coelho, 3.ª edição, Lisboa, Maio, 1977

20.2.15

COMUNS

Criaste e destruíste:
o que nasceu   morreu
o que morreu   nasceu:
um círculo cresceu
de um outro círculo
e a linha recta fez-se
no tempo labirinto
e o perdido no ermo
ganhou luz no destino --
e todo o recriado
e todo o destruído
foram ambos à face
comuns da tua vida.

António Salvado

Essa Estória, Portugália Editora, Junho de 2008

17.2.15

PALAVRAS

Tocam-me
como lábios,
como beijos.
Pássaros, sedentos de ramos
e de sombra,
pousam-me nos ombros.
A movimentos de asa,
desenham-me ainda um corpo
- secreta arquitectura de água,
rasgada no vento.

Luísa Dacosta

(Poema para a colecção de postais "À Sombra do Mar".
1999 - A-Ver-O-Mar / Póvoa de Varzim)

colhido aqui

8.2.15

Jorge de Sena

HOMENAGEM À GRÉCIA


Os deuses, ladrões,
promíscuos, bestiais,
traiçoeiros, sádicos,
belíssimos às vezes.
Os escravos sacudindo
as oliveiras, remando
nas galés, dormindo
com os donos e as donas,
os filósofos conversam,
Édipo vaza os olhos,
os coros cantam e dançam.
Céu azul, terra seca,
o mar tão cheio de ilhas,
na trípode a sibila.
As colunas dos templos.
Como tudo é estátua de mármore,
e não importa a cabeça
que falta, e os braços
que também faltem,
e o sexo arrancado
pelo tempo ou a vergonha
de parra que novos padres
sonhem bem larga
e comprida. Os deuses
eram confusos. Com nomes
que variavam, lugares 
em que mudavam
de vida. Orestes
será perdoado. Mas
os discípulos de Sócrates
sentam-se na areia,
e o filósofo, diz
Aristófanes, ia
ver a marca lá deixada,
por não usarem cuecas.
Antígona  será morta.
E o vaso castanho e negro
é um caco. As fontes 
secaram. Lagartos
moram no capacete
de Agamémnon. Os deuses
comem galinhas cruas,
cabritos, cabras e bodes,
bebem sangue. Ladrões,
promíscuos, bestiais,
traiçoeiros, sádicos,
belíssimos. Às vezes,
Palas Ateneia emerge
da cabeça de Zeus.
O manto dela custa
muitos dracmas. Será
o dracma a moeda?

1961

Jorge de Sena

PEREGRINATIO AD LOCA INFECTA 70 POEMAS E UM EPÍLOGO, Portugália Editora, Lisboa, 1999

1.2.15

INTERMÉDIO

Alguém que se ignora
passeia a sua mágoa
lá pela noite fora.

Já sem saber se existe,
entre silêncio e treva,
nem alegre nem triste,
alguém que a própria sorte
enjeita vai absorto
num sonho que é a morte
e é vida -- sendo morto.

Luís Amaro

DIÁRIO ÍNTIMO
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DÁDIVA E OUTROS POEMAS, &etc, Lisboa, 2006