em boa verdade houve tempo em que tive uma
ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
e traço meia dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
sua própria profundidade
Herberto Helder
Poemas Canhotos, Porto Editora, Maio, 2015
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