25.11.25

Abril

De Abril recordo o ano, o mês e o dia
Que demarcaram o antes e o depois:
Se antes muita sombra nos traía,
Logo após a urgência tinha dois
Ou mais caminhos a seguir, trilhando
Por vezes o mais curto, tal a febre
Nos píncaros da pura agitação,

Do natural contágio, onde e quando
A fome de mãos dadas com a sede
Acicatavam a revolução.
De Abril recordo Maio e o seu primeiro
Dia de imensa multidão que sonhava
Ser livre o tempo inteiro e pedia
Trabalho, paz e pão.


© Domingos da Mota

Tempestade seca e outros poemas, Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Agosto de 2025


24.11.25

Moscas

As moscas mudam, e o mau cheiro é tanto
que tresanda a mil léguas de distância:
se o risco de fedor não causa espanto,
olhando a ambição, vendo a arrogância
de moscas que voltejam em redor
do pote e do poder, fica a noção
de ser a impostura, sem pudor,
o germe da voraz propagação.
As moscas vão mudando e a picardia
contamina o ar que se respira
e alimenta bem mais do que soía
a ameaça diária que transpira
por sob o fingimento, cuja insídia
respalda a avidez da moscaria.


© Domingos da Mota

18.11.25

A corveia

Depois de muitos anos, muita luta,
direitos e deveres, contratos mil,
arrogam-se alguns filhos-da-puta
com força para impor uma lei vil
de trabalho de graça (como outrora
os servos da gleba prós senhores),
cujo banco de horas, hora a hora,
engorde mais e mais exploradores.
A súbitas decretam a corveia,
o trabalho forçado, o confisco,
sabendo que armada a tensa teia
desenvolve tentáculos, e o risco
de cevar a avidez com a dureza
duma austera, apagada e vil tristeza.

Domingos da Mota

13.11.25

Ad libitum

Amigos, uns quinhentos, virtuais,
são tantos, mas tão poucos os citáveis
que utilizam as redes sociais
em debates abertos, memoráveis
com doutos comentários que ademais
exijam uma aguda autocrítica.
De tantos e tão poucos, gosto mais
dos amigos frontais e não politica-
mente correctos, que aprofundam as
questões com perspicaz acutilância,
cabalmente, sem mas nem meio mas,
que mesmo quando em franca discordância,
a forma como os vejo é de modo
a não tomar a parte pelo todo.


Domingos da Mota


10.11.25

Teatro de sombras



Fosse o começo, mas é quase o fim;
e o fim começa quando principia
o lusco-fusco, a meia luz que o dia
deixa medrar até que a noite, enfim,
derrame a escuridão (o sol deserte
para o lado de lá do oceano),
enquanto deste lado sobe o pano
do teatro de sombras que promete
entrar em cena, sendo o palco o ser
que enche de ilusões o seu vazio
levado pela crença, e ao arrepio
da luz que a razão procure ter
sobre a húbris tocada por demónios
que geram impassíveis unicórnios.


Domingos da Mota

1.11.25

De profundis

Colho as flores negras do tempo
que murcharam no jardim;
as dobras do pensamento
são da cor do tempo assim
que tarda o esquecimento
dos que chegados ao fim
deixaram em testamento
uma saudade sem fim.
Do tempo não colho as rosas,
das searas o seu trigo,
e se adejam mariposas
o seu voo é tão antigo
que me perco, apesar
de ver a estrela polar.


© Domingos da Mota