1.5.25

Primeiro de Maio

    Tanta bandeira
     vermelha

     Teresa Horta


Tanta bandeira
vermelha
tanto sol
quanta alegria
tanta gente
nova e velha

ombro a ombro
de mãos dadas
rua afora
neste dia.
Fosse agora
como outrora

maré alta
um mar de gente:
tanta bandeira
vermelha
a drapejar
livremente.



© Domingos da Mota

25.4.25

ABRIL - OPUS 25

O dia preservado na memória,
o dia inicial inteiro e limpo,
matriz da liberdade onde a história
radica a liberdade que ora sinto,

está de braços abertos ao futuro
(por muito que o presente seja turvo
e torvo,
vendo quem o ameaça).

A liberdade livre continua
a encher as praças e as ruas
contra o ódio e o medo —
sem mordaças.

Fevereiro de 2024 (inédito)

(verso de Sophia de Mello Breyner Andresen, em itálico)

Domingos da Mota

SEMPRE - poemas para assinalar os cinquenta anos do 25 de Abril, edição da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Edições Afrontamento, Lda., Abril de dois mil e vinte e quatro.

CANTATA, OP. 25

    Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
     era morada e instrumento de alegria.

     Eugénio de Andrade


Conjugavas as palavras 
transparentes num rio
caudaloso de águas roucas.
Simples, tão ousadas,

tão ardentes soltavam
as paixões de boca em boca.
Palavras limpas, levantadas,
densas, a galope no dorso

do verão. Inteiras? Ateadas?
Ternas? Tensas? -- Traziam
o futuro pela mão. (Tantas
palavras por aí pisadas.

.-- À procura de voz, quantas
estarão? Semeadas na terra?
Agasalhadas? -- Vê o chão
em pousio: este chão).

Domingos da Mota

Bolsa de Valores e Outros Poemas, Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010

Abril

De Abril recordo o ano, o mês e o dia
Que demarcaram o antes e o depois:
Se antes muita sombra nos traía,
Logo após a urgência tinha dois
Ou mais caminhos a seguir, trilhando
Por vezes o mais curto, tal a febre
Nos píncaros da pura agitação,

Do natural contágio, onde e quando
A fome de mãos dadas com a sede
Acicatavam a revolução.
De Abril recordo Maio e o seu primeiro
Dia de imensa multidão que sonhava
Ser livre o tempo inteiro e pedia
Trabalho, paz e pão.


© Domingos da Mota


21.4.25

18.4.25

62 teatro da guerra


no teatro
da guerra
cada dia
trabalha
nova companhia.
mas permanece
o encenador
e a peça
é sempre
do mesmo autor.
o actor                                                 esse fenece
esse fenece                                          com a cena
com a cena
e desaparece.
é um teatro
realista
que a toda a hora
muda de artista.




mas de hora a hora deus melhora


Alberto Pimenta

O LABIRINTODONTE, 7 nós, 2012

13.4.25

STABAT MATER (PERGOLESI)

Pranto que afoga

o coração da mulher

que canta

até ao soar

da última nota.


João Pedro Mésseder


Estação dos Líquidos, Elefante Editores, Setembro de 2021

6.4.25

Variações sobre a lama VII

nem há lixívia ou aguarrás

que apague as marcas que traz


Vasco Graça Moura



Se alguma trama

sumisse a lama

limpasse o lastro

varresse o rasto


nem que fizesse

uma barrela

apagaria

o labéu dela


© Domingos da Mota


4.4.25

Variações sobre a lama VI

Se há quem queira

fazer da lama

uma bandeira

luzeiro chama


facho farol:

pendão a prumo

súmula e sumo

guião de escol


© Domingos da Mota

1.4.25

Variações sobre a lama V

Se quem proclama

ser impoluto

(que não tem lama

no valhacouto)


esconde o rastro

sob o tapete

será que passa

sem o ferrete?


© Domingos da Mota

30.3.25

A indústria da morte

A indústria da morte,
de vento em popa,
segue a galope,
varre a Europa:

investe em armas,
nos arsenais
quer mais bisarmas
e mais letais;

difunde o medo
com kits vários,
como se fôssemos
todos ignaros.

Futura carne
para canhão?
Senhores da guerra,
comigo, não.

© Domingos da Mota

26.3.25

Variações sobre a lama IV

Se há quem sufrague

eleja vote

vote na lama

e nem denote


(habituado

a chafurdar)

maior prurido

sequer mal-estar


© Domingos da Mota

24.3.25

[Não toques nos objectos imediatos]

Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.


Herberto Helder

ÚLTIMA CIÊNCIA, Assírio & Alvim, Cooperativa Editora e Livreira, CRL, Lisboa, Novembro de 1988

21.3.25

Filosofia política

       a partir de poemas de Carlos Drummond de Andrade e de Manuel Bandeira


Estou farto da poesia
como se renda de bilros:
tricotada bonitinha
a alancear a vidinha
com porosos atavios

e mesuras timoratas
amarrotadas sem viço
cabisbaixa de alpargatas
e de olhos sempre de gatas
entre a dor e o derriço.

Ai do lirismo que arrima
e nem é carne nem peixe
pois um poema sem espinha(s)
virgulado picuinhas
será melhor que se deixe

de mergulhar no mar alto
no abismo dos sentidos
de atravessar o asfalto
de voar de ir a salto
pra mundos desconhecidos.

O poema deve ser
uma pedra no caminho
com as sílabas a arder -
língua de fogo a crescer
e a morder até ao imo.

Mas se a mão o largar
numa toada vazia
desenfreada frenética
há que suster a poética -
e soltar a poesia.

Poetas abaixo a rima
(se ela for a prisão
onde o poema definha).
Estou farto de poesia
que não é libertação.

© Domingos da Mota


[que poemas]

que poemas

merecem o sacrifício

de uma árvore?


© Domingos da Mota

20.3.25

Equinócio da Primavera

Fosse o sol da Primavera
que viesse celebrar
(depois da chuva, quem dera)
e não o vento a soprar

as nuvens negras da guerra
(com laivos de guerra fria),
fosse o sol da Primavera
que iluminasse este dia;

fossem melros e pardais
e andorinhas em bandos,
e não estes infernais
avejões, com ditirambos

que decantam o Inverno
permanente, quase eterno.


© Domingos da Mota