5.7.25

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

O que é um nome?, um rosto
levantado com o lume dos dias?,
este lume que arde, arrefece,

nos consome, nos devora os ossos
taciturnos? O que é um nome
cinzelado a fogo?, esculpido

num rio de águas vivas?,
da pulsão das águas ao tumulto
das veias dilatadas, abrasivas?


Domingos da Mota

Bolsa de Valores e Outros Poemas
, Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010

2.7.25

O VELHO ABUTRE

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas


Sophia de Mello Breyner

Grades, publicações Dom Quixote, Novembro de 1970

21.6.25

Ofício

Ofício de verão -
a sede abrasa o canto
insurrecto das cigarras 

Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, edição Busílis, 2018

10.6.25

Correm turvas as águas deste rio

Correm turvas as águas deste rio
Que as do céu e as do monte as enturbaram;
Os campos florescidos se secaram;
Intratável se fez o vale, e frio.

Passou o verão, passou o ardente estio;
Umas cousas por outra se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
O mundo, não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.


Luís de Camões


Sonetos de Luís de Camões escolhidos por Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim, Julho 2000




7.6.25

A LONGO PRAZO

Valente na medida da sua maldade,

a gota arrisca-se

a perfurar a montanha

nos próximos cem mil anos.


José Emilio Pacheco


A Árvore Tocada pelo Raio, Antologia Poética, Tradução de Miguel Filipe Mochila, Maldoror, 2024

2.6.25

Sinédoque

Dissimula o engodo

do populismo e, dessarte,

toma a parte pelo todo

e o todo pela parte.


Domingos da Mota

1.5.25

Primeiro de Maio

    Tanta bandeira
     vermelha

     Teresa Horta


Tanta bandeira
vermelha
tanto sol
quanta alegria
tanta gente
nova e velha

ombro a ombro
de mãos dadas
rua afora
neste dia.
Fosse agora
como outrora

maré alta
um mar de gente:
tanta bandeira
vermelha
a drapejar
livremente.



© Domingos da Mota

25.4.25

ABRIL - OPUS 25

O dia preservado na memória,
o dia inicial inteiro e limpo,
matriz da liberdade onde a história
radica a liberdade que ora sinto,

está de braços abertos ao futuro
(por muito que o presente seja turvo
e torvo,
vendo quem o ameaça).

A liberdade livre continua
a encher as praças e as ruas
contra o ódio e o medo —
sem mordaças.

Fevereiro de 2024 (inédito)

(verso de Sophia de Mello Breyner Andresen, em itálico)

Domingos da Mota

SEMPRE - poemas para assinalar os cinquenta anos do 25 de Abril, edição da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Edições Afrontamento, Lda., Abril de dois mil e vinte e quatro.

CANTATA, OP. 25

    Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
     era morada e instrumento de alegria.

     Eugénio de Andrade


Conjugavas as palavras 
transparentes num rio
caudaloso de águas roucas.
Simples, tão ousadas,

tão ardentes soltavam
as paixões de boca em boca.
Palavras limpas, levantadas,
densas, a galope no dorso

do verão. Inteiras? Ateadas?
Ternas? Tensas? -- Traziam
o futuro pela mão. (Tantas
palavras por aí pisadas.

.-- À procura de voz, quantas
estarão? Semeadas na terra?
Agasalhadas? -- Vê o chão
em pousio: este chão).

Domingos da Mota

Bolsa de Valores e Outros Poemas, Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010

21.4.25

18.4.25

62 teatro da guerra


no teatro
da guerra
cada dia
trabalha
nova companhia.
mas permanece
o encenador
e a peça
é sempre
do mesmo autor.
o actor                                                 esse fenece
esse fenece                                          com a cena
com a cena
e desaparece.
é um teatro
realista
que a toda a hora
muda de artista.




mas de hora a hora deus melhora


Alberto Pimenta

O LABIRINTODONTE, 7 nós, 2012

13.4.25

STABAT MATER (PERGOLESI)

Pranto que afoga

o coração da mulher

que canta

até ao soar

da última nota.


João Pedro Mésseder


Estação dos Líquidos, Elefante Editores, Setembro de 2021

6.4.25

Variações sobre a lama VII

nem há lixívia ou aguarrás

que apague as marcas que traz


Vasco Graça Moura



Se alguma trama

sumisse a lama

limpasse o lastro

varresse o rasto


nem que fizesse

uma barrela

apagaria

o labéu dela


© Domingos da Mota


4.4.25

Variações sobre a lama VI

Se há quem queira

fazer da lama

uma bandeira

luzeiro chama


facho farol:

pendão a prumo

súmula e sumo

guião de escol


© Domingos da Mota

1.4.25

Variações sobre a lama V

Se quem proclama

ser impoluto

(que não tem lama

no valhacouto)


esconde o rastro

sob o tapete

será que passa

sem o ferrete?


© Domingos da Mota

26.3.25

Variações sobre a lama IV

Se há quem sufrague

eleja vote

vote na lama

e nem denote


(habituado

a chafurdar)

maior prurido

sequer mal-estar


© Domingos da Mota

24.3.25

[Não toques nos objectos imediatos]

Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.


Herberto Helder

ÚLTIMA CIÊNCIA, Assírio & Alvim, Cooperativa Editora e Livreira, CRL, Lisboa, Novembro de 1988