17.11.24

[Silêncio, terra-mãe, por favor!]

Silêncio, terra-mãe, por favor!

Que fiquem apenas as aves
tecendo, com bicos macios,
os rasgos agrestes da dor.


Victor Oliveira Mateus


EREMUS ET CIVITAS LUCUM Antologia Poética (1984 - 2024), Editora Labirinto, Fafe, 2024

6.11.24

Onfaloscopia

O seu umbigo é o centro
do mundo    do universo
visto por fora  e  por dentro
do direito       ou do avesso:

e sendo o centro do mundo
sempre que gira    rodando
soberbamente              rotundo
onde quer que esteja e quando

é sem dúvida        o maior
dos umbigos e  tão grande
que o universo    em redor
do seu umbigo se expande


© Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, Busílis, Dezembro 2018

1.11.24

De profundis

Colho as flores negras do tempo
que murcharam no jardim;
as dobras do pensamento
são da cor do tempo assim
que tarda o esquecimento
dos que chegados ao fim
deixaram em testamento
uma saudade sem fim.
Do tempo não colho as rosas,
das searas o seu trigo,
e se adejam mariposas
o seu voo é tão antigo
que me perco, apesar
de ver a estrela polar.


© Domingos da Mota

27.10.24

QUASE-HAIKU

Mudança de hora.
Atrasa-se o relógio
por dentro ou por fora?


Domingos da Mota

Eufeme n.º 23, Magazine de Poesia (Abril/Junho 2022), Editor: Sérgio Ninguém 

24.10.24

Os outros

Como falar dos outros sem falar de nós,
nós que somos os outros para outros
e como eles tantas vezes só
em busca de um lugar que nos acoite?

© Domingos da Mota

23.10.24

Antonio Cicero (1945-2024)



VALEU


Vida, valeu.
Não te repetirei jamais.



Antonio Cicero





Guardar a Cidade e os Livros Porventura, Coleção Plural, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A., Lisboa, dezembro de 2020

fraude

a fraude é um petardo
um bluff cinzento
no catre de um frade

é silêncio e alarde

é um útero e um odre
um sabor a vinagre
de uma cabra pobre

é um pedinte abastado

é verso por lebre
de um vate falido
num café da baixa

            garoto fingido


António Ferra


Jogos telúricos (um fio de nylon em pleno deserto)
, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Maio de 2024

21.10.24

O ar

O ar tornou-se mais espesso,
mais pesado, mais sombrio
(quase virado do avesso)
e com um cheiro a bafio.

O risco de empestar
tudo o que mexe em redor
é real, e o fedor
será pior, bem pior.


© Domingos da Mota

19.10.24

DEPOIS

Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.

Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.


Manuel António Pina

NENHUMA PALAVRA E ENHUMA LEMBRANÇA, Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro 1999

18.10.24

como voltar a levantar uma árvore

Comece com as folhas, com os
pequenos galhos e os ninhos que
foram sacudidos, desconjuntados
ou desfeitos pela queda; devem ser
recolhidos e fixados novamente
nos seus respectivos lugares. Não
é um trabalho árduo, a menos que
os ramos maiores tenham sido
esmagados ou mutilados.


W. S. Merwin

como voltar a levantar uma árvore, tradução de Jorge Sousa Braga, edição da Flâneur, Porto, Setembro de 2023:3

17.10.24

Este homem que esperou

Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra de uma árvore
mudar de direcção
ao seu pobre destino

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra


António Ramos Rosa

Matéria de Amor
, Prefácio de Arnaldo Saraiva, Editorial Presença, Lda., Lisboa

16.10.24

ERATO DE BRAÇO AO PEITO E AS CONSEQUÊNCIAS DISSO




Erato anda de braço ao peito.

Tropeçou num pleonasmo imprevisto,
estatelou-se, partiu um braço.
Por azar, o braço direito.

O que quer dizer
que terá de passar a acariciar-me
com a mão esquerda.

O que não sei se será bem
a mesma coisa.


A. M. Pires Cabral

Na Morte de Erato, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Outubro de 2024

12.10.24

ENTRE GROU E GRIFO

Que se esconde a dizer?

Nada zumbirá <que não dê sombra> para escrever de sua vida.

Nada ficará  do  fôlego  que  se  alcança  ao  espreitar de olhos

  baixos.

Quem se enfada no patíbulo gramatical

Não escapa

E exclui do seu corpo diante da luz da parte escura,

A lâmpada que sem ser candeia, eleva-se da retina.

Será,  certamente,  escaravelho  malcheiroso,  se  regressa  ao

  mundo, se descalça o sapato.



Tudo o que aqui se disse, desdiz-se. (Nada diz.)


José Emílio-Nelson

ROSA CANINA, Edições Esgotadas, Lda., setembro, 2024

7.10.24

O GUARDADOR DE RETRETES

É uma profissão em desuso
Fornecia as chaves do WC

e papel higiénico (por uma moeda)
e assegurava a limpeza

das instalações sanitárias
O mais humilde dos ofícios

Não conheço outro
de que tanto se aproxime

o ofício de poeta


Jorge Sousa Braga

A Flor Cadáver e Outros Poemas, Assírio & Alvim, Setembro de 2024:42

26.9.24

ÚLTIMA FORMA

Poe. Pound. Pós.
Baudelaire entra no ar
como uma bandeira.
Somos esses passos
perdidos no deserto:
neste lugar-comum nenhum
em pedaços.
Nem sumários.
Sumimos, sim
na sombra, no suor
e o boom do sol
– nu, solo, martelo –
com sua nota de luz
é a última ondalarme
que chega no espaço
no começo deste chão
em que vou cortando tudo
com uma faca que cega.


Armando Freitas Filho


POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX DOS MODERNISTAS À ACTUALIDADE, selecção, introdução e notas Jorge Henrique Bastos, Antígona Editores Refractários, Lisboa, Fevereiro de 2002

22.9.24

Revoadas

As aves (com os restos 
do verão) partem
às revoadas para o sul
mal o sol lhes dá 
o diapasão.

© Domingos da Mota

18.9.24

OS POEMAS

os poemas são assim coisas que a gente
lê nos livros de versos. há quem diga
que são coisas que a gente sente.
que se fazem quando se rima ante com
violante mas eu prefiro não perceber isso.
os poemas é quando a gente queima os
fósforos todos da carteira ou bebe o vinho
todo da garrafa ou lê um livro do
princípio ao fim ou estamos simplesmente
o olhar ou não dizemos nada ou não
fazemos nada ou caímos nus na mulher
nua ou escrevemos amo-te ou telefonamos
ao acaso ou      os poemas são seres
que nascem ciclicamente. agora por exemplo
vou deixar crescer a barba.

José Alberto Marques


M. Alberta Menéres E. M. de Melo e Castro, Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1997, 2.º Volume, Círculo de Poesia Moraes Editores, Lisboa, 1979:342