28.3.25

[A insustentável leveza]

A insustentável leveza
do peso na consciência
tranquila que despreza

com enorme soberbia
as notícias sobre casos
que surgem no dia a dia

repletas de descasos
onde a suspeita irradia,
não será uma evidência?

Peso morto ou peso vivo
o fardo que sobre os ombros
da consciência é cativo,

inegável nos escombros
onde o peso é mais pesado,
mesmo quando denegado?


© Domingos da Mota

26.3.25

Variações sobre a lama IV

Se há quem sufrague

eleja vote

vote na lama

e nem denote


(habituado

a chafurdar)

maior prurido

sequer mal-estar


© Domingos da Mota

24.3.25

[Não toques nos objectos imediatos]

Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.


Herberto Helder

ÚLTIMA CIÊNCIA, Assírio & Alvim, Cooperativa Editora e Livreira, CRL, Lisboa, Novembro de 1988

21.3.25

Filosofia política

       a partir de poemas de Carlos Drummond de Andrade e de Manuel Bandeira


Estou farto da poesia
como se renda de bilros:
tricotada bonitinha
a alancear a vidinha
com porosos atavios

e mesuras timoratas
amarrotadas sem viço
cabisbaixa de alpargatas
e de olhos sempre de gatas
entre a dor e o derriço.

Ai do lirismo que arrima
e nem é carne nem peixe
pois um poema sem espinha(s)
virgulado picuinhas
será melhor que se deixe

de mergulhar no mar alto
no abismo dos sentidos
de atravessar o asfalto
de voar de ir a salto
pra mundos desconhecidos.

O poema deve ser
uma pedra no caminho
com as sílabas a arder -
língua de fogo a crescer
e a morder até ao imo.

Mas se a mão o largar
numa toada vazia
desenfreada frenética
há que suster a poética -
e soltar a poesia.

Poetas abaixo a rima
(se ela for a prisão
onde o poema definha).
Estou farto de poesia
que não é libertação.

© Domingos da Mota


[que poemas]

que poemas

merecem o sacrifício

de uma árvore?


© Domingos da Mota

20.3.25

Equinócio da Primavera

Fosse o sol da Primavera
que viesse celebrar
(depois da chuva, quem dera)
e não o vento a soprar

as nuvens negras da guerra
(com laivos de guerra fria),
fosse o sol da Primavera
que iluminasse este dia;

fossem melros e pardais
e andorinhas em bandos,
e não estes infernais
avejões, com ditirambos

que decantam o Inverno
permanente, quase eterno.


© Domingos da Mota

Com o rei dentro de si

Ninguém fala de remorsos,

a consciência que pesa

sobre os ombros, sobre os ossos

consoante a natureza


da desonra, quando tal

resulta inseparável

de pecado capital

francamente imperdoável.


Remorsos de quê, dirão:

não matei como Caim

nem causei depredação

nem coisas piores. Assim,


de consciência tranquila

ufanam-se por aí

videirinhos que desfilam

com o rei dentro de si.


© Domingos da Mota

16.3.25

Variações sobre a lama III

Se a lama impregna

e alucina

quem passa a perna

(coisa benigna?)


fará do lodo

um ritual

modo de estar

consensual?


© Domingos da Mota

14.3.25

Variações sobre a lama II

Quanta barganha

se posta ao léu

deixa quem ama

manter o véu


atormentado

com falta d'ar

por ver o mundo

a desabar?


© Domingos da Mota

11.3.25

Variações sobre a lama

Fétida a lama

que nem barrela

limpa quem ama

deitar-se nela


assim opaca

barrenta escura

que só cloaca

será tão turva


© Domingos da Mota

9.3.25

Feios, porcos e maus

       (Brutti, sporchi e cattivi, de Ettore Scola, 1976)



Que anónimas denúncias, delações
enlameiam o nome de quem seja
salpicado com as imputações
que o noticiário não preveja,
pois colam-se ao corpo, e assim coladas
difundem a suspeita e o veneno
que abalam consciências enquistadas,
imunes a qualquer contraveneno?

Se apesar das suspeitas sobre a mesa,
em vez de transparência, sobram dúvidas
e medram ameaças, na presteza
de uma fuga em frente, os fura-vidas
que usam com cinismo artes e manhas
deixarão de crescer num mar de lama?


© Domingos da Mota

[revisto]

8.3.25

Mulher

      Metade mulher     metade sonho

       Jorge Sousa Braga


Metade terra     metade lua
Metade céu     metade averno
Metade sol     metade chuva
Metade verão     metade inverno

Metade outono - a primavera
Mais que metade (de vida grávida)
Metade eterna     metade efémera
Metade ansiosa     metade impávida 

Metade recta     metade curva
Metade côncava     metade convexa
Metade lúcida     metade turva
Metade simples     metade complexa

Metade amora     metade maçã
Metade rosa    metade espinho
Metade noite     metade manhã
Metade urtiga     metade linho

Metade rua     metade casa
Metade beijo     metade abraço
Metade colo     metade asa
Metade mulher     metade pássaro

© Domingos da Mota
    

14.2.25

SUBLEVAÇÃO

Sublevas a luz:
macia   de veludo

tua pele desprende
aromas subtis

e o fulgor alucina
leve   desenvolto

num sorriso de sol
e sal quase feliz:

odores que latejam
sensuais  translúcidos

apascentam promessas
(meneias os quadris)

e brilham as retinas
que o rubor seduz:

sublevas o lume
a túmida raiz

Domingos da Mota

Bolsa de Valores e Outros Poemas, Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010

12.2.25

O GATO EM SONETO

Para a Lua, a Ísis e o Lindo


Um gato debaixo de um tapete
é muito mais gato do que em cima:
debaixo do tapete há um palacete
que muito lhe aumenta a autoestima.

Para o gato, nada é demais:
se muito tem, muito mais quer ele ter.
Não lhe bastam as coisas essenciais,
há outros tesouros a apetecer!

O gato é um bicho bizantino,
com uma autoestima infinita:
se lhe dá um desejo repentino

ou o satisfaz, ou faz uma fita.
O melhor é a gente entendê-lo,
para que se lhe não erice o pêlo!

20-07-2022

Eugénio Lisboa


Manual Prático de Gatos Para Uso Diário e Intenso, Guerra e Paz, Editores, S. A., Novembro de 2024

8.2.25

Com a rima a tiracolo

Não tem engenho nem arte
para deixar de rimar
(não acedendo dessarte
a quem o quer desviar
para o verso que devia
mais que soltar-se, ser branco,
libertar-se de medidas),
distanciar-se de Espanca,
de Camões e de Pessoa,
de todos os que rimaram
ou rimam (alguns à toa),
e com engenho levaram
a água ao seu moinho.
Como não é de modismos
nem segue na sua coda,
continua o seu caminho
com a rima a tiracolo.



© Domingos da Mota

4.2.25

ONDE EXISTE O ESPAÇO

Cisternas são de meu espaço
habitadas de espessura
motivo de teus abraços
ou estradas de muitos
laços
para trazer à cintura

Rodeio-palavra-amiga

onde se põe
a ternura.



Maria Teresa Horta

MINHA SENHORA DE MIM
, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Abril de 1971