24.7.14

[há o bigode caído e]

[a joão ubaldo ribeiro]


há o bigode caído e
redondo dos lados;
o teu olhar achinesado
compreensivo, escuro
azulado
esperançoso.
há o brilho pátrida
na tua testa;
dentes (os) sorrindo para aqui.
o pescoço reptilizante
a camisa que foi azul.

teus cabelos escasseiam;
teu sorriso - em letras -
talvez se eternize...

Ondjaki

DENTRO DE MIM FAZ SUL Seguido de ACTO SANGUÍNEO, Editorial Caminho, 2010.

21.7.14

MORTIFICAÇÃO

A folia dos Santos é a da poesia
Vagarosamente entregue às iluminações,
Ao tormento da devoção,
À sintaxe das orações difíceis, talvez não lhes baste repeti-las.
Uma peregrinação pungente de intenções
Reconhecendo a imperfeição
Como pena perpétua.

José Emílio-Nelson

Bacchanalia seguido de Como Falsa Porta [TEOLOGIA CULPOSA], Edições Sem Nome, 2/2014

17.7.14

Cicatrizes

Olhar as rugas, ver
as cicatrizes que o rosto
desenrola sulco a sulco:

sentir do corpo outrora
agora um vulto de quase
descarnadas as raízes.


Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, edição Busílis, 2018


5.7.14

COMPRIMIDO VI

Erva daninha


Não tiveste ainda tempo de
comemorar a vitória sobre
a corriola e já estás de novo
em guerra agora com o escalracho
Preocupado com as beringelas
os tomates os pepinos de conserva
é uma luta inglória a que se
prenuncia A essa erva
outra se seguirá nem que seja
a mais daninha das ervas
- a poesia

Jorge Sousa Braga

A BULA, Correio do Porto, Julho de 2014

2.7.14

O POEMA E A CASA

Paramos devagar entre paredes brancas
Entre mobílias escuras e as janelas verdes
Um longo instante paramos em frente
Das mil luzes e mil estátuas do poente

Sophia de Mello Breyner Andresen

O BÚZIO DE CÓS e outros poemas, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 1997

1.7.14

ESTALACTITE

III


Se o poema
analisasse
a própria oscilação
interior,
cristalizasse
um outro movimento
mais subtil,
o da estrutura
em que se geram
milénios depois
estas imaginárias
flores calcárias,
acharia
o seu micro-rigor.

Carlos de Oliveira

MICROPAISAGEM, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969