24.8.24

Vulto

Vale a pena insistir, tentar ser visto, 
teimar, obstinar, voltar à carga,
pôr-se em bicos de pés e, de língua em riste,
tornar-se viral como se praga?

Melhor 
será andar fora do séquito, 
seguir como quem está algures incógnito, 
manter-se entre os anónimos, com o mérito 
de saber que não vale um heterónimo.

© Domingos da Mota


21.8.24

MÁ CONSCIÊNCIA

O adjectivo
dá-me de comer.
Se não fora ele
o que houvera de ser?

Vivo de acrescentar às coisas
o que elas não são.
Mas é por cálculo,
não por ilusão.


Alexandre O'Neill

DE OMBRO NA OMBREIRA
, publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969

10.8.24

DESCRIÇÃO DA GUERRA EM GUERNICA

X


O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura;
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos; com o suor da estrela
tatuada na testa.


Carlos de Oliveira

A Leve Têmpora do Vento, Antologia Poética, Selecção e nota de João Pedro Mésseder, Quasi Edições, Novembro de 2001

GINÁSTICA APLICADA

Meu verso cínico é minha terapêutica
e minha ginástica. Nele me penduro
e ergo, em sua precisão de barra fixa.
Nele me exercito em pino flexível,
sílaba a sílaba, movimento controlado
de pulso, e me volteio aparatoso
na pirueta lograda, no lance bem ritmado.

Há um sorriso discreto em minha segurança.

Porém, se às vezes me estatelo, folha Seca
(o verso é difícil e escorregadio), meu verso,
como de vós, ri-se de mim em ar de troça.


Rui Knopfli

Uso Particular (Poemas Escolhidos de Rui Knopfli)
, edição do lado esquerdo, Coimbra / Fundão, Julho de 2017

7.8.24

— Glória —

(Malcolm Lowry)


A glória é como uma terrível catástrofe,
pior que a casa incendiada; enquanto
se abate a trave-mestra, o fragor
da destruição repercute-se cada vez mais depressa;
e tu contemplas tudo aquilo, inane
testemunha da danação.

Como uma bebedeira a glória devora
a casa da alma, revela que trabalhaste
para coisa pouca: para ela -
ah, queria que esse beijo traiçoeiro nunca tivesse
molhado a minha face: queria
fundir-me, só, para sempre, na obscuridade, na noite.


1987 e 1996-97

Herberto Helder 

OUOLOF Poemas Mudados para Português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997

5.8.24

HAIKU DO BECO DE SÃO MIGUEL

As palavras são para as ocasiões,
o luto é quotidiano.

Não passou por aqui o amor.


Manuel de Freitas

GAME OVER, &etc, Lisboa, Maio de 2002