31.12.24

Musa parca

Musa parca
musa muda

Adília Lopes

Apanhar ar, Exemplar n.º 358/400, Assírio & Alvim, Outubro 2010

26.12.24

27 caleidoscópio

o ópio
é o meu
periscópio
revela
o que está
para lá
da água
que está
para cá.
não sei
se os hei
ou se os há
os pedaços
de perna
e braços
para lá
dos sargaços
de cá.
mas a vista
não é má.


Alberto Pimenta


O LABIRITODONTE
, 7 nós, Porto, 2012

19.12.24

A Leitura

Não te deixes enrolar!
És tu quem tem de pagar...
Põe o dedo em cada letra;
pergunta: «Por que está 'qui?»


Alexandre O'Neill


ANOS 70 poemas dispersos, Assírio & Alvim, Outubro 2005

8.12.24

O nosso medo

o nosso medo
não usa camisa de dormir
não tem olhos de coruja
não levanta a tampa
não apaga a vela

também não tem o rosto de um cadáver

o nosso medo
é um pedaço de papel
encontrado no bolso
«avisar o Wójcik
esconderijo da Rua Dluga incendiado»

o nosso medo
não voa nas asas da ventania
não se senta na torre da igreja
é terra-a-terra

tem a forma
de uma trouxa feita à pressa
com agasalhos
provisões secas
e uma arma

o nosso medo
não tem o rosto de um cadáver
os mortos são gentis para connosco
levamo-los às costas

dormimos debaixo da mesma manta
fechamos-lhes os olhos
retocamos-lhes os lábios
escolhemos lugares secos
para os enterrar

não demasiado fundo
nem demasiado à superfície


Zbigniew Herbert

POESIA QUASE TODA (1956-1998), Introdução de J. M. Coetzee, Selecção de J. M. Coetzee e Alissa Valles, Tradução do polaco e notas de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, edição Cavalo de Ferro, Penguin Random House, Grupo Editorial Lda., Lisboa, Outubro de 2024

7.12.24

O SOBRETUDO

Sobretudo o silêncio com gola de astracã
o sorriso entretela o sonho assertoado
sobretudo o peludo que se põe de manhã
e à noite é escovado.
Sobretudo o chumaço da cultura nos ombros
e a fazenda inglesa de meia estação.
Sobretudo o cuidado que ao despi-lo pomos
em estarmos vestidos como os outros são.


José Carlos Ary dos Santos

OBRA POÉTICA
, Editorial «Avante!», Lisboa, 1994:157