31.12.24

2024-2025

Passagem de ano


Está quase a chegar.
Oxalá venha
 
o novo 
com melhor disposição, 

pois o ano que finda, 
Deus o tenha
 
no quinto dos infernos, 
sem perdão.

Se acaso não vier 
com outra onda, outro
 
modo de enfrentar 
a genocida 

desumanidade
que se afunda em 

negócios de morte; 
se a vida não for 

a razão primeira 
da sua vinda, 

melhor será que vá
com o que finda.

© Domingos da Mota

Musa parca

Musa parca
musa muda

Adília Lopes

Apanhar ar, Exemplar n.º 358/400, Assírio & Alvim, Outubro 2010

26.12.24

27 caleidoscópio

o ópio
é o meu
periscópio
revela
o que está
para lá
da água
que está
para cá.
não sei
se os hei
ou se os há
os pedaços
de perna
e braços
para lá
dos sargaços
de cá.
mas a vista
não é má.


Alberto Pimenta


O LABIRITODONTE
, 7 nós, Porto, 2012

23.12.24

Soneto de Natal

       com que a vida resiste, e anda, e dura.

          Pedro Tamen


Não digo do Natal – mas da natura
de quem faz do poder um pesadelo
que aprofunda as sementes da amargura
através do garrote e do escalpelo;

não digo do Natal – mas da tortura
que macera as feridas com desvelo,
impassível à dor que já satura
os ombros causticados pelo gelo.

Dissesse do Natal – seria bom
que pudesse cantar, subir o tom
das loas e dos hinos e dos ritos,

se em vez duma esmola, tão-somente
renascesse o respeito pela gente
que povoa o Natal dos aflitos.

© Domingos da Mota


21.12.24

Solstício de inverno

Não decantes mais poemas
de Natal, a menos que
venham sem barbas nem renas
voadoras, só e se,
para além de originais
na sua extrema nudez,
realcem as radicais
contradições do que vês.

Longe de ser um poema
de Natal, com mais do mesmo,
que se alongue sobre o tema
e reluza, quase a esmo,
este celebra o solstício
de inverno, ab initio.


© Domingos da Mota





19.12.24

A Leitura

Não te deixes enrolar!
És tu quem tem de pagar...
Põe o dedo em cada letra;
pergunta: «Por que está 'qui?»


Alexandre O'Neill


ANOS 70 poemas dispersos, Assírio & Alvim, Outubro 2005

15.12.24

Poema de aniversário

Malgrado a dor fisgada numa perna
que pode ser ciática ou pior,
uma dor que não dorme, não hiberna
nem denota melhoras, apesar

das correntes, massagens, ultra-sons
e doutras abordagens fisiátricas
que exacerbam em vez de mitigar
as previsões sombrias, sorumbáticas;

malgrado o mundo em volta, sem sentido,
sujeito à profusão de ecocídios,
de guerras e disputas aguerridas,
e a braços com terríveis genocídios;

malgrado a lucidez feita num oito,
bem-vindos sejam os teus setenta e oito


© Domingos da Mota

8.12.24

O nosso medo

o nosso medo
não usa camisa de dormir
não tem olhos de coruja
não levanta a tampa
não apaga a vela

também não tem o rosto de um cadáver

o nosso medo
é um pedaço de papel
encontrado no bolso
«avisar o Wójcik
esconderijo da Rua Dluga incendiado»

o nosso medo
não voa nas asas da ventania
não se senta na torre da igreja
é terra-a-terra

tem a forma
de uma trouxa feita à pressa
com agasalhos
provisões secas
e uma arma

o nosso medo
não tem o rosto de um cadáver
os mortos são gentis para connosco
levamo-los às costas

dormimos debaixo da mesma manta
fechamos-lhes os olhos
retocamos-lhes os lábios
escolhemos lugares secos
para os enterrar

não demasiado fundo
nem demasiado à superfície


Zbigniew Herbert

POESIA QUASE TODA (1956-1998), Introdução de J. M. Coetzee, Selecção de J. M. Coetzee e Alissa Valles, Tradução do polaco e notas de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, edição Cavalo de Ferro, Penguin Random House, Grupo Editorial Lda., Lisboa, Outubro de 2024

7.12.24

O SOBRETUDO

Sobretudo o silêncio com gola de astracã
o sorriso entretela o sonho assertoado
sobretudo o peludo que se põe de manhã
e à noite é escovado.
Sobretudo o chumaço da cultura nos ombros
e a fazenda inglesa de meia estação.
Sobretudo o cuidado que ao despi-lo pomos
em estarmos vestidos como os outros são.


José Carlos Ary dos Santos

OBRA POÉTICA
, Editorial «Avante!», Lisboa, 1994:157