24.3.25

[Não toques nos objectos imediatos]

Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.


Herberto Helder

ÚLTIMA CIÊNCIA, Assírio & Alvim, Cooperativa Editora e Livreira, CRL, Lisboa, Novembro de 1988

21.3.25

Metapoesia

       a partir de poemas de Carlos Drummond de Andrade e de Manuel Bandeira


Estou farto da poesia
como se renda de bilros:
tricotada bonitinha
a mitigar a vidinha
com porosos atavios

e mesuras timoratas
amarrotadas sem viço
cabisbaixa de alpargatas
e de olhos sempre de gatas
entre a dor e o derriço.

Ai do lirismo que arrima
e nem é carne nem peixe
pois um poema sem espinha(s)
virgulado picuinhas
será melhor que se deixe

de mergulhar no mar alto
no abismo dos sentidos
de atravessar o asfalto
de voar de ir a salto
pra mundos desconhecidos.

O poema deve ser
uma pedra no caminho
com as sílabas a arder -
língua de fogo a crescer
e a morder até ao imo.

Mas se a mão o largar
numa toada vazia
desenfreada frenética
há que suster a poética -
e soltar a poesia.

Poetas abaixo a rima
(se ela for a prisão
onde o poema definha).
Estou farto de poesia
que não é libertação.

© Domingos da Mota


[que poemas]

que poemas

merecem o sacrifício

de uma árvore?


© Domingos da Mota

11.3.25

Variações sobre a lama

Fétida a lama

que nem barrela

limpa quem ama

deitar-se nela


assim opaca

barrenta escura

que só cloaca

será mais turva


© Domingos da Mota