Trouxe para as névoas da cidade
o ouro dos trigais, a brancura
da cal que os mouros deixaram
por herança, como a nora
que sempre deu água ao seu moinho.
Percorreu as ilhas da história para
britar a pedra, esmiuçar os alicerces,
começando a amar as maresias,
a areia suave, as luzes das arribas,
e quando o coração se lhe partia
escrevia um poema onde o sol
entrava pelos ossos, dourava a saudade
e punha as aves negras a voarem
para longe, estrelas do desgosto
que as nuvens arrastavam para fora
do horizonte. As cintilações
de Setembro reverdecem
o que a memória decantou, o mar
a que a errância da memória
sempre volta. Folhas secas
aparentes formam um tornado
luminoso que bate à sua porta.
E a porta abre-se: O mar está ali.
Egito Gonçalves
Entre mim e a minha morte há um copo de crepúsculo, Campo das Letras - Editores, S. A., Porto, Fevereiro de 2006
29.1.15
21.1.15
PALAVRAS DE PETER HOWSON SOBRE SEU QUADRO 'O AMEIXOAL', QUE EXECUTOU ENQUANTO PINTOR OFICIAL DA GUERRA DA BÓSNIA
Aos primeiros alvores da manhã
o circunscrito silêncio do ameixoal
não é digno de tanta brutalidade -- as crianças
brincam junto à sebe da quinta, os frutos
amadurecem nos ramos, há nuvens
irisadas de sol e vento no céu
de prata e as aves soletram
as casas plácidas, camponesas,
que uma linha azul recorta no horizonte.
Numa árvore, está um soldado
amarrado a um ramo, seminu e castrado,
abandonado à morte, vendo-se muito
bem a ferida aberta e os braços
contorcidos, a indicar o terrível tormento
que a guerra é, aqui, num remoto vale
da Bósnia, ou em outro qualquer lugar,
como primeira e última indignidade.
Velamos o abismo, vemos o corvo
sobrevoar a cabeça do cadáver pungente
e não sabemos o que dizer às crianças
que brincam, tão próximo dos desígnios
da barbárie e tão inocentes que quase apetece,
mais do que admoestá-las pela evidente candura,
meter no quadro os dedos e voltar-lhes a cabeça
para que não possam ver a atrocidade.
Amadeu Baptista
UM POUCO ACIMA DA MISÉRIA, &etc, 2014
o circunscrito silêncio do ameixoal
não é digno de tanta brutalidade -- as crianças
brincam junto à sebe da quinta, os frutos
amadurecem nos ramos, há nuvens
irisadas de sol e vento no céu
de prata e as aves soletram
as casas plácidas, camponesas,
que uma linha azul recorta no horizonte.
Numa árvore, está um soldado
amarrado a um ramo, seminu e castrado,
abandonado à morte, vendo-se muito
bem a ferida aberta e os braços
contorcidos, a indicar o terrível tormento
que a guerra é, aqui, num remoto vale
da Bósnia, ou em outro qualquer lugar,
como primeira e última indignidade.
Velamos o abismo, vemos o corvo
sobrevoar a cabeça do cadáver pungente
e não sabemos o que dizer às crianças
que brincam, tão próximo dos desígnios
da barbárie e tão inocentes que quase apetece,
mais do que admoestá-las pela evidente candura,
meter no quadro os dedos e voltar-lhes a cabeça
para que não possam ver a atrocidade.
Amadeu Baptista
UM POUCO ACIMA DA MISÉRIA, &etc, 2014
19.1.15
SCHUMANN POR HOROWITZ
São herança camponesa, as mãos.
Estas pequenas mãos, de geração
em geração, vêm de muito longe:
amassaram a cal, abriram sulcos
frementes na terra negra, semearam
e colheram, ordenharam cabras,
pegaram em forquilhas para limpar
currais: de sol em sol nenhum
trabalho lhes foi alheio.
Agora são frágeis: frágeis, delicadas,
nascidas para dar corpo a sons
que, noutras épocas, outras mãos
se obstinaram em escrever como
se escrevessem a própria vida.
Ao vê-las, ninguém diria que
a terra corria no seu sangue.
São mãos envelhecidas, mas no teclado
são capazes do inacreditável: juntar
nos mesmos compassos o rumor
dos bosques em setembro e os risos
infantis a caminho do mar.
Eugénio de Andrade
Os Sulcos da Sede, Editora Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Setembro, 2001
Estas pequenas mãos, de geração
em geração, vêm de muito longe:
amassaram a cal, abriram sulcos
frementes na terra negra, semearam
e colheram, ordenharam cabras,
pegaram em forquilhas para limpar
currais: de sol em sol nenhum
trabalho lhes foi alheio.
Agora são frágeis: frágeis, delicadas,
nascidas para dar corpo a sons
que, noutras épocas, outras mãos
se obstinaram em escrever como
se escrevessem a própria vida.
Ao vê-las, ninguém diria que
a terra corria no seu sangue.
São mãos envelhecidas, mas no teclado
são capazes do inacreditável: juntar
nos mesmos compassos o rumor
dos bosques em setembro e os risos
infantis a caminho do mar.
Eugénio de Andrade
Os Sulcos da Sede, Editora Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Setembro, 2001
14.1.15
Da Frágil Sabedoria
B
No subsolo de uma barbárie germinam a forma e a semântica
de outra; alarga-se, olímpico, o campo de batalha
da usura e da corrupção.
Casimiro de Brito,
Da Frágil Sabedoria, Quasi Edições, Outubro de 2001
3.1.15
em cada verso insinuo
em cada verso insinuo
um metal, uma rasura,
uma voz, uma figura,
um avanço e um recuo,
um disparo, a ganga impura
de alegria, raiva, amuo,
ou da irónica amargura
de medir a arquitectura
das luas que não possuo,
e a razão, fria impostura
da romântica aventura.
junto o mais que não excluo,
dia a dia, e que perdura
a estalar o que construo.
Vasco Graça Moura
uma carta no inverno, Quetzal Editores, Lisboa, Março de 1997
um metal, uma rasura,
uma voz, uma figura,
um avanço e um recuo,
um disparo, a ganga impura
de alegria, raiva, amuo,
ou da irónica amargura
de medir a arquitectura
das luas que não possuo,
e a razão, fria impostura
da romântica aventura.
junto o mais que não excluo,
dia a dia, e que perdura
a estalar o que construo.
Vasco Graça Moura
uma carta no inverno, Quetzal Editores, Lisboa, Março de 1997
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