Muitos homens solitários caminham
acompanhados por um vazio.
Com frequência detêm-se numa paragem
escura ou iluminada
e o acompanhante observa,
projectada numa parede,
a sua vida de ente desaparecido.
Habitantes transparentes cruzam
as cidades da nossa memória.
Os que transportam o vazio
dialogam com as imagens sucessivas
que o muro lhes devolve.
Levam, atada com uma corda invisível,
uma ausência.
Francisco Javier Irazoki
ANIMAL ABERTO, Antologia Poética 1977-2021, selecção feita pelo autor, tradução de Ana Catarina M. Martins, edição Medula, Abril de 2023
28.5.23
OS HABITANTES TRANSPARENTES
20.5.23
O código de barras é uma grade de ferro
O código de barras é uma grade de ferro
nas janelas da prisão.
Não deixa ver a terra,
o sol a realçar a cor da urze,
os pinheiros, o mato, as silvas
com algumas amoras onde o diabo mijou.
O código de barras identifica tudo:
o silêncio dos gatos,
a dimensão do pénis,
o saldo imprevisto da conta bancária,
a água para iludir a fome,
a ineficácia das petições,
a televisão ligada por inércia,
as obras embargadas pela câmara,
o amor não correspondido.
António Ferra
Dos livros levanta-se um pássaro, edição do autor, Lisboa, Abril de 2017
nas janelas da prisão.
Não deixa ver a terra,
o sol a realçar a cor da urze,
os pinheiros, o mato, as silvas
com algumas amoras onde o diabo mijou.
O código de barras identifica tudo:
o silêncio dos gatos,
a dimensão do pénis,
o saldo imprevisto da conta bancária,
a água para iludir a fome,
a ineficácia das petições,
a televisão ligada por inércia,
as obras embargadas pela câmara,
o amor não correspondido.
António Ferra
Dos livros levanta-se um pássaro, edição do autor, Lisboa, Abril de 2017
15.5.23
FOLHAS
Duas folhas secas
de plátano
entram comigo
no elevador.
Também elas
empurradas
pelo vento.
José Alberto Oliveira
De Passagem, Assírio & Alvim, Maio de 2018
de plátano
entram comigo
no elevador.
Também elas
empurradas
pelo vento.
José Alberto Oliveira
De Passagem, Assírio & Alvim, Maio de 2018
8.5.23
Auto-retrato
com zoologia fundacional
Caranguejo pernóstico
que se disfarça com pala preta
e que tem por hábito gnóstico
ficar sempre no fim da sala
antes ficava na retranca
para poder jogar nas aulas ao galo
e viver no tanque de papel
as grandes guerras da batalha naval
agora não avança um passo
preferindo sempre o último assento
a cadeira mais pequenina
a de buinho
para fechar os olhos libertar a mente
e ressonar à vontade
nos Concílios dos Deuses Marinhos
Caranguejo pernóstico
que se disfarça com pala preta
e que tem por hábito gnóstico
ficar sempre no fim da sala
antes ficava na retranca
para poder jogar nas aulas ao galo
e viver no tanque de papel
as grandes guerras da batalha naval
agora não avança um passo
preferindo sempre o último assento
a cadeira mais pequenina
a de buinho
para fechar os olhos libertar a mente
e ressonar à vontade
nos Concílios dos Deuses Marinhos
António Cândido Franco
Bestiário [poema de zoologia fundacional aplicada], Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Setembro de 2022
Bestiário [poema de zoologia fundacional aplicada], Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Setembro de 2022
6.5.23
MANUAL DE QUÍMICA, ALGUMAS PÁGINAS
III
E tudo é tão frágil: a pedra, o ferro
os grandes veios do fogo,
tão quebradiço tudo, tão mortal:
as montanhas, os troncos das árvores
que crescem mil anos;
o caminho da água
teimosamente cavado,
e a gramagem do ouro,
o próprio diamante, orgulhoso,
condenado também
a desfazer-se: é uma questão
de tempo, e o tempo tem toda a paciência
do mundo.
Tão frágil tudo: os glaciares
e as cordilheiras, e a lei da gravidade,
e a insistência da lava.
Tudo, até a tua
palavra.
E tudo é tão frágil: a pedra, o ferro
os grandes veios do fogo,
tão quebradiço tudo, tão mortal:
as montanhas, os troncos das árvores
que crescem mil anos;
o caminho da água
teimosamente cavado,
e a gramagem do ouro,
o próprio diamante, orgulhoso,
condenado também
a desfazer-se: é uma questão
de tempo, e o tempo tem toda a paciência
do mundo.
Tão frágil tudo: os glaciares
e as cordilheiras, e a lei da gravidade,
e a insistência da lava.
Tudo, até a tua
palavra.
Pedro Eiras
NERVO / 18 colectivo de poesia (Maio-Agosto 2023), Editora: Maria F. Roldão
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