23.6.24

Quadra sanjoanina

S. João, o alho-porro,
o cravo e o manjerico
vão na rusga; e eu não corro,
mas em casa é que não fico.


Domingos da Mota

18.6.24

[Como ave de arribação]

Como ave de arribação
também o chapéu de palha
salta de Verão a Verão.


Francisco José Craveiro de Carvalho

As sapatilhas de Usain Bolt e outros tercetos, Companhia das Ilhas, Junho de 2015

16.6.24

[Ontem é passado]

Ontem é passado
o dia de hoje também acaba
a Primavera foge

 

Yosa Buson 

PRIMEIRO AMOR e outros poemas, Editora Licorne, outubro de 2013

13.6.24

Tomamos a vila depois de um intenso bombardeamento

A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
- Dos que bóiam nas banheiras -
À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...

E o da criança loura?


Fernando Pessoa

OBRA POÉTICA [Cancioneiro] 
I Volume, Organização, prefácio, cronologia e biografia de João Gaspar Simões, Círculo de Leitores, Lisboa, Janeiro de 1986

11.6.24

HEUREKA

Nosso dever acordados
ver tempo passar na pele
não cantar dogma aos ouvidos
do primeiro que passa sem ele

Nosso alibi sentir caos
possuir no sangue a senha
afastar de nós o vale
que treme olhando a montanha

Nosso corpo o mato as silvas
ter nos nervos explosão
tocar fartos mesmo quando
não temos flauta nem pão


Fernando Grade


Maria Alberta Menéres, E.M.de Melo e Castro, Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977, 2.º Volume, Moraes Editores, Lisboa 1979

10.6.24

Volta a mote

Pus meus olhos nũa funda,
E fiz um tiro com ela
Às grades dũa janela.


Ũa dama, de malvada,
Tomou seus olhos na mão
E tirou-me ũa pedrada
Com eles ao coração.
Armei minha funda então,
E pus os meus olhos nela:
Trape! quebro-lhe a janela.


Luís de Camões


LÍRICA, Terceiro volume das Obras Completas, Edição Círculo de Leitores, Lda., Setembro de 1984, 10.ª edição.

1.6.24

O PÃO

Não é ainda um seio
mas quase. Na brancura.
Porém, onda de leite
a branca levedura.

Um mecanismo incerto
de ferro e madrugada.
A fome e o excesso
futuros. Na seara.

A fome e a carência
de sol(o) para a boca.
Não é ainda um campo
de areia. Ou terra solta.

Um campo descampado
um canto com bolor.
É arte que se move
minéria como a água.

Engenho de palato.
Alvéolo de pulmão.
Respira-se o exemplo
de sol. Oxigénio.

Não é ainda um círculo
branco por toda a mesa:
manchado na toalha
de sombra e aspereza.

Não é ainda uma ave
descendo sobre a pele:
um mecanismo triste
movendo a boca breve.


Nuno Guimarães

Entre Sílabas e Lavas: poesia completa, Assírio & Alvim, Abril de 2024