31.7.24

Girassóis não tenho

hei-de dizer ao Van Gogh que não tenho girassóis mas
                                     se ele quiser hidranjas azuis
ou mesmo um pinheiro nórdico de cor turquesa e que
                                     abre os braços com ternura
pode vir cá pintar

a porta está aberta


Inácio Nuno Pignatelli

Compêndio de Botânica (árvores, arbustos e plantas de Vila Nova de Cerveira)
, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Abril de 2022

27.7.24

[o sol]

o sol
à roda
deixando
sombras nas
costas dos trabalhadores

*

the sun
walks in circles
tossing
shadows onto
laborer's backs


Robert D. Wilson


de: 11 Tanka seguidos de 20 haiku [tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho], DiVersos - Poesia e Tradução | n.º 37 Primavera - Verão 2024

22.7.24

RIZOMAS

As vozes dos poetas
que ouço desde criança
são caules submersos na minha fala
a enviar o rumor das raízes

Todos eles navegam
na superfície da minha língua materna
transportando saberes e ignorâncias
transmitindo negrumes e fulgores
cumprindo desvios e sentidos
na ameaça da certeira eternidade
do pó.


Inês Lourenço


Ainda o Lugar Incerto da Procura, Edição Glaciar, Lisboa, Agosto de 2024

18.7.24

Charleville-Mézières

                                  Para Luís Quintais


O discurso
mais curto
de recusa
do Nobel
foi o de Patti
(a Smith):

Rimbaud.


Francisco José Craveiro de Carvalho


Revoada, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Setembro de 2023

10.7.24

[a ocidente e antes que soubesse]

a ocidente      e antes que soubesse
geografia       o mar atravessava
os quartos de dormir      fazia a cava
por dentro das plantas        quem merece

seu tempo não possui      a maresia
crescendo entre muros      da cozinha
ao longo corredor        por aí vinha
em sombras e perfis   talvez o dia

houvesse mais rigor   além a rua
o muro dos jardins     perto um novo
desenho de texturas    e é tanto

o tempo que nos dói    que quase nua
imagem vem à mão   e só o povo
conhece bem a festa   tem seu canto

Diogo Alcoforado

espinho quase sempre
27 exercícios com um desenho do autor, ASA Editores, S. A., Porto, Abril de 2004

9.7.24

LÍRIOS

Um dia deixarei para sempre o casaco no cabide da entrada
outras mãos que não as minhas haverá para o recolher
outros olhos pelos meus lhe hão-de fitar depois a ausência.
Depois, nem isso.
Há um momento em que se estende a toalha sobre a mesa dos mortos
como se tivesse sido sempre a mesa dos vivos. Esse dia virá.
Tudo então estará certo e limpo como o esquecimento.
Ou quase assim.

Dispo agora toda esta roupa e escrevo
- sem frio nem perda nem desastre -
a partir desse dia que virá, esse dia depois de mim:

lírios crescem no acaso vivo da relva
uma leve poeira se acrescenta ao ar que não respiro.

Rosa Maria Martelo

SIRINGE, Averno, Lisboa, Março de 2017

8.7.24

DOIS POEMAS DE VIAGEM

I


A solidão é uma magnólia:
autocarro de gente
um cansaço de
pétalas
sem cor


II


A tristeza do tempo
escorre pelo autocarro,
onde o que não vivemos
espera chegar a casa


André Osório

Sala de Operações, Guerra e Paz, Editores, Lda., Março de 2024

5.7.24

[Bato à tua porta sem medo]

Bato à tua porta sem medo
Não tinha ainda nascido
estava no ventre da minha mãe
quando uma grande tristeza
me invadiu

Nunca mais me deixou desde aí
Está comigo agora
que estou velho e doente
e o tempo me arrasta pelos cabelos

O tempo toca o tambor
Não tenho para onde ir
Deixa-me entrar


Kabir


O Nome Daquele Que Não Tem Nome, versões de Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, Março de 2016