Como falar dos outros sem falar de nós,
nós que somos os outros para outros
e como eles tantas vezes só
em busca de um lugar que nos acoite?
© Domingos da Mota
24.10.24
23.10.24
Antonio Cicero (1945-2024)
VALEU
Vida, valeu.
Não te repetirei jamais.
Antonio Cicero
Guardar a Cidade e os Livros Porventura, Coleção Plural, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A., Lisboa, dezembro de 2020
fraude
a fraude é um petardo
um bluff cinzento
no catre de um frade
é silêncio e alarde
é um útero e um odre
um sabor a vinagre
de uma cabra pobre
é um pedinte abastado
é verso por lebre
de um vate falido
num café da baixa
garoto fingido
António Ferra
Jogos telúricos (um fio de nylon em pleno deserto), Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Maio de 2024
um bluff cinzento
no catre de um frade
é silêncio e alarde
é um útero e um odre
um sabor a vinagre
de uma cabra pobre
é um pedinte abastado
é verso por lebre
de um vate falido
num café da baixa
garoto fingido
António Ferra
Jogos telúricos (um fio de nylon em pleno deserto), Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Maio de 2024
21.10.24
O ar
O ar tornou-se mais espesso,
mais pesado, mais sombrio
(quase virado do avesso)
e com um cheiro a bafio.
O risco de empestar
tudo o que mexe em redor
é real, e o fedor
será pior, bem pior.
© Domingos da Mota
19.10.24
DEPOIS
Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.
Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.
Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança
se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.
Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.
Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança
se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.
Manuel António Pina
NENHUMA PALAVRA E ENHUMA LEMBRANÇA, Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro 1999
NENHUMA PALAVRA E ENHUMA LEMBRANÇA, Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro 1999
18.10.24
como voltar a levantar uma árvore
Comece com as folhas, com os
pequenos galhos e os ninhos que
foram sacudidos, desconjuntados
ou desfeitos pela queda; devem ser
recolhidos e fixados novamente
nos seus respectivos lugares. Não
é um trabalho árduo, a menos que
os ramos maiores tenham sido
esmagados ou mutilados.
pequenos galhos e os ninhos que
foram sacudidos, desconjuntados
ou desfeitos pela queda; devem ser
recolhidos e fixados novamente
nos seus respectivos lugares. Não
é um trabalho árduo, a menos que
os ramos maiores tenham sido
esmagados ou mutilados.
W. S. Merwin
como voltar a levantar uma árvore, tradução de Jorge Sousa Braga, edição da Flâneur, Porto, Setembro de 2023:3
como voltar a levantar uma árvore, tradução de Jorge Sousa Braga, edição da Flâneur, Porto, Setembro de 2023:3
17.10.24
Este homem que esperou
Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto
Este homem que esperou
à sombra de uma árvore
mudar de direcção
ao seu pobre destino
Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo
Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto
Este homem que esperou
à sombra de uma árvore
mudar de direcção
ao seu pobre destino
Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo
Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra
António Ramos Rosa
Matéria de Amor, Prefácio de Arnaldo Saraiva, Editorial Presença, Lda., Lisboa
Matéria de Amor, Prefácio de Arnaldo Saraiva, Editorial Presença, Lda., Lisboa
16.10.24
ERATO DE BRAÇO AO PEITO E AS CONSEQUÊNCIAS DISSO
Tropeçou num pleonasmo imprevisto,
estatelou-se, partiu um braço.
Por azar, o braço direito.
O que quer dizer
que terá de passar a acariciar-me
com a mão esquerda.
O que não sei se será bem
a mesma coisa.
A. M. Pires Cabral
Na Morte de Erato, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Outubro de 2024
12.10.24
ENTRE GROU E GRIFO
Que se esconde a dizer?
Nada zumbirá <que não dê sombra> para escrever de sua vida.
Nada ficará do fôlego que se alcança ao espreitar de olhos
baixos.
Quem se enfada no patíbulo gramatical
Não escapa
E exclui do seu corpo diante da luz da parte escura,
A lâmpada que sem ser candeia, eleva-se da retina.
Será, certamente, escaravelho malcheiroso, se regressa ao
mundo, se descalça o sapato.
Tudo o que aqui se disse, desdiz-se. (Nada diz.)
José Emílio-Nelson
ROSA CANINA, Edições Esgotadas, Lda., setembro, 2024
José Emílio-Nelson
ROSA CANINA, Edições Esgotadas, Lda., setembro, 2024
7.10.24
O GUARDADOR DE RETRETES
É uma profissão em desuso
Fornecia as chaves do WC
e papel higiénico (por uma moeda)
e assegurava a limpeza
das instalações sanitárias
O mais humilde dos ofícios
Não conheço outro
de que tanto se aproxime
o ofício de poeta
Fornecia as chaves do WC
e papel higiénico (por uma moeda)
e assegurava a limpeza
das instalações sanitárias
O mais humilde dos ofícios
Não conheço outro
de que tanto se aproxime
o ofício de poeta
Jorge Sousa Braga
A Flor Cadáver e Outros Poemas, Assírio & Alvim, Setembro de 2024:42
A Flor Cadáver e Outros Poemas, Assírio & Alvim, Setembro de 2024:42
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