10.6.25
Correm turvas as águas deste rio
Que as do céu e as do monte as enturbaram;
Os campos florescidos se secaram;
Intratável se fez o vale, e frio.
Passou o verão, passou o ardente estio;
Umas cousas por outra se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento, ou desvario.
Tem o tempo sua ordem já sabida;
O mundo, não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.
Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.
Luís de Camões
Sonetos de Luís de Camões escolhidos por Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim, Julho 2000
7.6.25
A LONGO PRAZO
Valente na medida da sua maldade,
a gota arrisca-se
a perfurar a montanha
nos próximos cem mil anos.
José Emilio Pacheco
A Árvore Tocada pelo Raio, Antologia Poética, Tradução de Miguel Filipe Mochila, Maldoror, 2024
2.6.25
Sinédoque
Dissimula o engodo
do populismo e, dessarte,
toma a parte pelo todo
e o todo pela parte.
Domingos da Mota
1.5.25
Primeiro de Maio
vermelha
Teresa Horta
Tanta bandeira
vermelha
tanto sol
quanta alegria
tanta gente
nova e velha
ombro a ombro
de mãos dadas
rua afora
neste dia.
Fosse agora
como outrora
maré alta
um mar de gente:
tanta bandeira
vermelha
a drapejar
livremente.
© Domingos da Mota
25.4.25
ABRIL - OPUS 25
o dia inicial inteiro e limpo,
matriz da liberdade onde a história
radica a liberdade que ora sinto,
(por muito que o presente seja turvo
e torvo,
vendo quem o ameaça).
A liberdade livre continua
a encher as praças e as ruas
contra o ódio e o medo —
sem mordaças.
Fevereiro de 2024 (inédito)
(verso de Sophia de Mello Breyner Andresen, em itálico)
Domingos da Mota
CANTATA, OP. 25
era morada e instrumento de alegria.
Eugénio de Andrade
Conjugavas as palavras
transparentes num rio
caudaloso de águas roucas.
Simples, tão ousadas,
tão ardentes soltavam
as paixões de boca em boca.
Palavras limpas, levantadas,
densas, a galope no dorso
do verão. Inteiras? Ateadas?
Ternas? Tensas? -- Traziam
o futuro pela mão. (Tantas
palavras por aí pisadas.
.-- À procura de voz, quantas
estarão? Semeadas na terra?
Agasalhadas? -- Vê o chão
em pousio: este chão).
Domingos da Mota
Bolsa de Valores e Outros Poemas, Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010
21.4.25
[De silêncio farei]
De silêncio farei
um cobertor para os dias
mais frios da saudade.
© Domingos da Mota
18.4.25
62 teatro da guerra
no teatro
da guerra
cada dia
trabalha
nova companhia.
mas permanece
o encenador
e a peça
é sempre
do mesmo autor.
o actor esse fenece
esse fenece com a cena
com a cena
e desaparece.
é um teatro
realista
que a toda a hora
muda de artista.
Alberto Pimenta
13.4.25
STABAT MATER (PERGOLESI)
Pranto que afoga
o coração da mulher
que canta
até ao soar
da última nota.
João Pedro Mésseder
Estação dos Líquidos, Elefante Editores, Setembro de 2021
6.4.25
Variações sobre a lama VII
nem há lixívia ou aguarrás
que apague as marcas que traz
Vasco Graça Moura
Se alguma trama
sumisse a lama
limpasse o lastro
varresse o rasto
nem que fizesse
uma barrela
apagaria
o labéu dela
© Domingos da Mota
4.4.25
Variações sobre a lama VI
Se há quem queira
fazer da lama
uma bandeira
luzeiro chama
facho farol:
pendão a prumo
súmula e sumo
guião de escol
© Domingos da Mota
1.4.25
Variações sobre a lama V
Se quem proclama
ser impoluto
(que não tem lama
no valhacouto)
esconde o rastro
sob o tapete
será que passa
sem o ferrete?
© Domingos da Mota
26.3.25
Variações sobre a lama IV
Se há quem sufrague
eleja vote
vote na lama
e nem denote
(habituado
a chafurdar)
maior prurido
sequer mal-estar
© Domingos da Mota
24.3.25
[Não toques nos objectos imediatos]
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.
ÚLTIMA CIÊNCIA, Assírio & Alvim, Cooperativa Editora e Livreira, CRL, Lisboa, Novembro de 1988
21.3.25
16.3.25
Variações sobre a lama III
Se a lama impregna
e alucina
quem passa a perna
(coisa benigna?)
fará do lodo
um ritual
modo de estar
consensual?
© Domingos da Mota
14.3.25
Variações sobre a lama II
Quanta barganha
se posta ao léu
deixa quem ama
manter o véu
atormentado
com falta d'ar
por ver o mundo
a desabar?
© Domingos da Mota
11.3.25
Variações sobre a lama
Fétida a lama
que nem barrela
limpa quem ama
deitar-se nela
assim opaca
barrenta escura
que só cloaca
será tão turva
© Domingos da Mota
14.2.25
SUBLEVAÇÃO
macia de veludo
tua pele desprende
aromas subtis
e o fulgor alucina
leve desenvolto
num sorriso de sol
e sal quase feliz:
odores que latejam
sensuais translúcidos
apascentam promessas
(meneias os quadris)
e brilham as retinas
que o rubor seduz:
sublevas o lume
a túmida raiz
Domingos da Mota
Bolsa de Valores e Outros Poemas, Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010
12.2.25
O GATO EM SONETO
Para a Lua, a Ísis e o Lindo
é muito mais gato do que em cima:
debaixo do tapete há um palacete
que muito lhe aumenta a autoestima.
Para o gato, nada é demais:
se muito tem, muito mais quer ele ter.
Não lhe bastam as coisas essenciais,
há outros tesouros a apetecer!
O gato é um bicho bizantino,
com uma autoestima infinita:
se lhe dá um desejo repentino
ou o satisfaz, ou faz uma fita.
O melhor é a gente entendê-lo,
para que se lhe não erice o pêlo!
20-07-2022
Eugénio Lisboa
Manual Prático de Gatos Para Uso Diário e Intenso, Guerra e Paz, Editores, S. A., Novembro de 2024
4.2.25
ONDE EXISTE O ESPAÇO
habitadas de espessura
motivo de teus abraços
ou estradas de muitos
laços
para trazer à cintura
Rodeio-palavra-amiga
a ternura.
Maria Teresa Horta
MINHA SENHORA DE MIM, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Abril de 1971
1.2.25
APOCALIPSE NA TELEVISÃO
interrompidas
para dar lugar a um anúncio.
A Árvore Tocada pelo Raio Antologia Poética, Tradução de Miguel Filipe Mochila, Maldoror, 2024
20.1.25
Deus Abençoe a América
Os Ianques e as suas blindadas paradas
Entoando as suas baladas de alegria
A galope pelo vasto mundo
Louvando o Deus da América.
As sarjetas estão entupidas de mortos
Dos que não puderam alistar-se
Dos outros que se recusam a cantar
Dos que estão a perder a voz
Dos que esqueceram a música.
Os cavaleiros têm chicotes que ferem.
A tua cabeça rola para a areia
A tua cabeça é uma poça no lixo
A tua cabeça é uma nódoa no pó
Os teus olhos apagaram-se e o teu nariz
Fareja apenas o fedor dos mortos
E todo o ar morto está vivo
Com o cheiro do Deus da América.
Janeiro 2003
Harold Pinter
Guerra, Tradução de Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, edições Quasi
3.1.25
soneto das hora de ponta
labirinto das luras: andar vivo
numa lura de veios de aço e luz
que num silvo macio te conduz
o corpo respirando colectivo
no ar, ora abafado, ora lascivo,
dos empurrões desencontrados, dos
magotes, pisadelas e recuos
quando as portas abertas fazem crivo.
das estações do ano só o espectro
por debaixo da terra desengata
um eco em estações que têm perfumes
de suor e azulejos: turbas, metro,
em que tu vais como sardinha em lata
mas depois te libertas em cardumes.
Vasco Graça Moura
uma carta no inverno, Quetzal Editores, Lisboa, Março de 1997