3.8.25

IN MEMORIAM

     à minha Mãe


Desaba o sol, o silêncio,
a dor no coração da terra
comovida; na levada

do tempo, no rigor da noite,
para sempre, desmedida.
Desaba a luz, o sentido — a vida.

Domingos da Mota

Agosto de 2003

Pequeno tratado das sombrasedição Busílis, 2018

2.8.25

Só quando os incêndios

Só quando os incêndios
forem naturais:
relâmpagos, raios,
rajadas de vento

que os acendam
e soprem e alastrem
(sem mãos escondidas,
fogachos e fósforos);

e as trovoadas,
súbitas e secas,
que sejam culpadas,
forem descobertas;

e nem a montante
do fogo que arde
sequer a jusante
soprar com alarde

o rol de granjeios,
de ganhos, proventos,
promessas, enleios,
desculpas, lamentos;

só quando os incêndios
depois do sol-posto
não derem estipêndios,
nem mesmo em Agosto.

© Domingos da Mota

20.7.25

Os outros

Como falar dos outros sem falar de nós,
nós que somos os outros para outros
e como eles tantas vezes só
em busca de um lugar que nos acoite?

© Domingos da Mota

11.7.25

MORTE

Sabemos que de todas as sementes
é a mais pesada. Havemos de esperar
por ela. Acolhemo-la e nada
podia ser tão nosso. Compreendemos
que no seu interior talvez exista
a última seiva, o rumor de outra
germinação para que fique
junto dela. Descai silenciosa
e devagar. A terra é o nosso corpo.

Fernando Guimarães


(Sete poemas, Revista de Poesia relâmpago N.º 29/30, Outubro de 2011-Abril de 2012, Ano XV)

5.7.25

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

O que é um nome?, um rosto
levantado com o lume dos dias?,
este lume que arde, arrefece,

nos consome, nos devora os ossos
taciturnos? O que é um nome
cinzelado a fogo?, esculpido

num rio de águas vivas?,
da pulsão das águas ao tumulto
das veias dilatadas, abrasivas?


Domingos da Mota

Bolsa de Valores e Outros Poemas
, Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010

2.7.25

O VELHO ABUTRE

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas


Sophia de Mello Breyner

Grades, publicações Dom Quixote, Novembro de 1970

21.6.25

Ofício

Ofício de verão -
a sede abrasa o canto
insurrecto das cigarras 

Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, edição Busílis, 2018

10.6.25

Correm turvas as águas deste rio

Correm turvas as águas deste rio
Que as do céu e as do monte as enturbaram;
Os campos florescidos se secaram;
Intratável se fez o vale, e frio.

Passou o verão, passou o ardente estio;
Umas cousas por outra se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
O mundo, não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.


Luís de Camões


Sonetos de Luís de Camões escolhidos por Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim, Julho 2000




7.6.25

A LONGO PRAZO

Valente na medida da sua maldade,

a gota arrisca-se

a perfurar a montanha

nos próximos cem mil anos.


José Emilio Pacheco


A Árvore Tocada pelo Raio, Antologia Poética, Tradução de Miguel Filipe Mochila, Maldoror, 2024

2.6.25

Sinédoque

Dissimula o engodo

do populismo e, dessarte,

toma a parte pelo todo

e o todo pela parte.


Domingos da Mota

1.5.25

Primeiro de Maio

    Tanta bandeira
     vermelha

     Teresa Horta


Tanta bandeira
vermelha
tanto sol
quanta alegria
tanta gente
nova e velha

ombro a ombro
de mãos dadas
rua afora
neste dia.
Fosse agora
como outrora

maré alta
um mar de gente:
tanta bandeira
vermelha
a drapejar
livremente.



© Domingos da Mota

25.4.25

ABRIL - OPUS 25

O dia preservado na memória,
o dia inicial inteiro e limpo,
matriz da liberdade onde a história
radica a liberdade que ora sinto,

está de braços abertos ao futuro
(por muito que o presente seja turvo
e torvo,
vendo quem o ameaça).

A liberdade livre continua
a encher as praças e as ruas
contra o ódio e o medo —
sem mordaças.

Fevereiro de 2024 (inédito)

(verso de Sophia de Mello Breyner Andresen, em itálico)

Domingos da Mota

SEMPRE - poemas para assinalar os cinquenta anos do 25 de Abril, edição da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Edições Afrontamento, Lda., Abril de dois mil e vinte e quatro.

21.4.25

18.4.25

62 teatro da guerra


no teatro
da guerra
cada dia
trabalha
nova companhia.
mas permanece
o encenador
e a peça
é sempre
do mesmo autor.
o actor                                                 esse fenece
esse fenece                                          com a cena
com a cena
e desaparece.
é um teatro
realista
que a toda a hora
muda de artista.




mas de hora a hora deus melhora


Alberto Pimenta

O LABIRINTODONTE, 7 nós, 2012

13.4.25

STABAT MATER (PERGOLESI)

Pranto que afoga

o coração da mulher

que canta

até ao soar

da última nota.


João Pedro Mésseder


Estação dos Líquidos, Elefante Editores, Setembro de 2021

4.4.25

Variações sobre a lama VI

Se há quem queira

fazer da lama

uma bandeira

luzeiro chama


facho farol:

pendão a prumo

súmula e sumo

guião de escol


© Domingos da Mota

1.4.25

Variações sobre a lama V

Se quem proclama

ser impoluto

(que não tem lama

no valhacouto)


esconde o rastro

sob o tapete

será que passa

sem o ferrete?


© Domingos da Mota

24.3.25

[Não toques nos objectos imediatos]

Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.


Herberto Helder

ÚLTIMA CIÊNCIA, Assírio & Alvim, Cooperativa Editora e Livreira, CRL, Lisboa, Novembro de 1988

11.3.25

Variações sobre a lama

Fétida a lama

que nem barrela

limpa quem ama

deitar-se nela


assim opaca

barrenta escura

que só cloaca

será tão turva


© Domingos da Mota

12.2.25

O GATO EM SONETO

Para a Lua, a Ísis e o Lindo


Um gato debaixo de um tapete
é muito mais gato do que em cima:
debaixo do tapete há um palacete
que muito lhe aumenta a autoestima.

Para o gato, nada é demais:
se muito tem, muito mais quer ele ter.
Não lhe bastam as coisas essenciais,
há outros tesouros a apetecer!

O gato é um bicho bizantino,
com uma autoestima infinita:
se lhe dá um desejo repentino

ou o satisfaz, ou faz uma fita.
O melhor é a gente entendê-lo,
para que se lhe não erice o pêlo!

20-07-2022

Eugénio Lisboa


Manual Prático de Gatos Para Uso Diário e Intenso, Guerra e Paz, Editores, S. A., Novembro de 2024

4.2.25

ONDE EXISTE O ESPAÇO

Cisternas são de meu espaço
habitadas de espessura
motivo de teus abraços
ou estradas de muitos
laços
para trazer à cintura

Rodeio-palavra-amiga

onde se põe
a ternura.



Maria Teresa Horta

MINHA SENHORA DE MIM
, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Abril de 1971

1.2.25

APOCALIPSE NA TELEVISÃO

Cornetas do fim do mundo
interrompidas
para dar lugar a um anúncio.


José Emilio Pacheco

A Árvore Tocada pelo Raio
Antologia Poética, Tradução de Miguel Filipe Mochila, Maldoror, 2024

20.1.25

Deus Abençoe a América

Lá vão eles outra vez,
Os Ianques e as suas blindadas paradas
Entoando as suas baladas de alegria
A galope pelo vasto mundo
Louvando o Deus da América.

As sarjetas estão entupidas de mortos
Dos que não puderam alistar-se
Dos outros que se recusam a cantar
Dos que estão a perder a voz
Dos que esqueceram a música.

Os cavaleiros têm chicotes que ferem.
A tua cabeça rola para a areia
A tua cabeça é uma poça no lixo
A tua cabeça é uma nódoa no pó
Os teus olhos apagaram-se e o teu nariz
Fareja apenas o fedor dos mortos
E todo o ar morto está vivo
Com o cheiro do Deus da América.


Janeiro 2003


Harold Pinter

Guerra,
Tradução de Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, edições Quasi







3.1.25

soneto das hora de ponta

labirinto das luras: andar vivo
numa lura de veios de aço e luz
que num silvo macio te conduz
o corpo respirando colectivo

no ar, ora abafado, ora lascivo,
dos empurrões desencontrados, dos
magotes, pisadelas e recuos
quando as portas abertas fazem crivo.

das estações do ano só o espectro
por debaixo da terra desengata
um eco em estações que têm perfumes

de suor e azulejos: turbas, metro,
em que tu vais como sardinha em lata
mas depois te libertas em cardumes.


Vasco Graça Moura


uma carta no inverno
, Quetzal Editores, Lisboa, Março de 1997