O verdadeiro poema
não se pode ler
É um tiro no escuro
inaudito e cego
Ana Hatherly
FIBRILAÇÕES, Quimera Editores, 2005
29.12.16
26.12.16
IA NO BATALHA
[sessões matinalmente dominicais
promovidas pelo CineClube do Porto]
saías
p'la crueldade
maior
o Inverno ferrando-te
nos olhos
uma luz metálica
por mera opção cromática
fixavas
as pombas
Ana Paula Inácio
ANÓNIMOS DO SÉCULO XXI, Averno | 2016
promovidas pelo CineClube do Porto]
saías
p'la crueldade
maior
o Inverno ferrando-te
nos olhos
uma luz metálica
por mera opção cromática
fixavas
as pombas
Ana Paula Inácio
ANÓNIMOS DO SÉCULO XXI, Averno | 2016
19.12.16
ENTREVISTA
diz-lhe que estás ocupado
a entrevistar-te a ti mesmo
mesmo porque se não
o pões desde já porta
fora tás quilhado vai
espiolhar-te apalpar-te
meter-te o dedo no cu
querer saber a quantas
quais mulheres ofereceste
teu recortado coração (pelo picotado)
em quantos quais sonetos meteste
o catorze e quantas quecas
te saíram pela ejaculatra
e ainda que livros levarias
para uma ilha deserta
se lá tivesses de empinar
o talo e fazê-lo florir sem a ajuda de ninguém
sequer de sexta-feira
apenas com os cinco dedos
que deus te deu para isso mesmo
mesmo porque tens de o pôr
já porta fora
Alexandre O'Neill
POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio 2007
a entrevistar-te a ti mesmo
mesmo porque se não
o pões desde já porta
fora tás quilhado vai
espiolhar-te apalpar-te
meter-te o dedo no cu
querer saber a quantas
quais mulheres ofereceste
teu recortado coração (pelo picotado)
em quantos quais sonetos meteste
o catorze e quantas quecas
te saíram pela ejaculatra
e ainda que livros levarias
para uma ilha deserta
se lá tivesses de empinar
o talo e fazê-lo florir sem a ajuda de ninguém
sequer de sexta-feira
apenas com os cinco dedos
que deus te deu para isso mesmo
mesmo porque tens de o pôr
já porta fora
Alexandre O'Neill
POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio 2007
11.12.16
VARIAÇÕES DO BRANCO
Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva
Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco
Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.
Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.
Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:
As dunas plenárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.
Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata -- uma lembrança vã.
Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada
que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fossem as levíssimas pétalas, as vagas sílabas de uma neve --
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros
das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá
Manuel Gusmão
migrações do fogo, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2004
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva
Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco
Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.
Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.
Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:
As dunas plenárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.
Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata -- uma lembrança vã.
Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada
que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fossem as levíssimas pétalas, as vagas sílabas de uma neve --
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros
das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá
Manuel Gusmão
migrações do fogo, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2004
10.12.16
ESFINGE
Olha mais uma vez Traça de cor
o mapa desse rosto as suas linhas tortas
tatuadas no vento À tua espera
o seu meio-sorriso iluminando
corações como o teu
esses olhos translúcidos a boca
que também tu beijaste e que hoje ainda
floresce no teu sangue É outro o mesmo
rosto
refém do tempo e no entanto igual
ao da primeira noite ao da primeira
esfinge O seu enigma
está cada vez mais perto cada vez
mais longe
Fernando Pinto do Amaral
Manual de Cardiologia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 2016
o mapa desse rosto as suas linhas tortas
tatuadas no vento À tua espera
o seu meio-sorriso iluminando
corações como o teu
esses olhos translúcidos a boca
que também tu beijaste e que hoje ainda
floresce no teu sangue É outro o mesmo
rosto
refém do tempo e no entanto igual
ao da primeira noite ao da primeira
esfinge O seu enigma
está cada vez mais perto cada vez
mais longe
Fernando Pinto do Amaral
Manual de Cardiologia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 2016
8.12.16
PEDRAS
Morar no tempo, mesmo
soterradas, coexistir no ofício durável da
neutralidade: dólmen menir pirâmide ameia
agulha gótica ou soleira
humilde, espelho duradouro
de poderes e impudores, brasão
seixo alvo fonte ou pedra de
arremesso, de jogar, de roçar à espera de
fertilidade, de esmigalhar, urinar,
sepultar. Vértebra
do mundo.
Inês Lourenço
O JOGO DAS COMPARAÇÕES, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Outubro de 2016
soterradas, coexistir no ofício durável da
neutralidade: dólmen menir pirâmide ameia
agulha gótica ou soleira
humilde, espelho duradouro
de poderes e impudores, brasão
seixo alvo fonte ou pedra de
arremesso, de jogar, de roçar à espera de
fertilidade, de esmigalhar, urinar,
sepultar. Vértebra
do mundo.
Inês Lourenço
O JOGO DAS COMPARAÇÕES, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Outubro de 2016
4.12.16
THEREZA
Sem apelo
no vórtice do
dia no
abandono do chão na
lâmina da
luz feroz
fora da vida
desfaz-se agora
a minha doída
desavinda companheira
Ferreira Gullar
Obra Poética, Quasi Edições, Outubro 2003
no vórtice do
dia no
abandono do chão na
lâmina da
luz feroz
fora da vida
desfaz-se agora
a minha doída
desavinda companheira
Ferreira Gullar
Obra Poética, Quasi Edições, Outubro 2003
3.12.16
NOITE
Do chão onde ontem enterrei
a noite irrompe como um garfo,
noite de hoje que eu não conheço
e todavia já
noite velha que sei de cor.
Como um gesto premeditado,
nasce assim devagar,
tão nacional e tão leve,
tão primaveril pelas esquinas,
tão cheia de gatos nos telhados,
tão sem sono por ela adiante,
pequena noite habitual e casta
ligada ao dia por minúsculos grãos de café,
cores, vidros e frágeis cordões de fumo,
mas no entanto e sempre
tão principalmente noite.
José Manuel Simões
SOBRAS COMPLETAS, Prefácios de Helder Macedo e José de Sá Caetano, abysmo, Lisboa, Outubro 2016
a noite irrompe como um garfo,
noite de hoje que eu não conheço
e todavia já
noite velha que sei de cor.
Como um gesto premeditado,
nasce assim devagar,
tão nacional e tão leve,
tão primaveril pelas esquinas,
tão cheia de gatos nos telhados,
tão sem sono por ela adiante,
pequena noite habitual e casta
ligada ao dia por minúsculos grãos de café,
cores, vidros e frágeis cordões de fumo,
mas no entanto e sempre
tão principalmente noite.
José Manuel Simões
SOBRAS COMPLETAS, Prefácios de Helder Macedo e José de Sá Caetano, abysmo, Lisboa, Outubro 2016
1.12.16
[Um homem duplo cego]
Um homem duplo cego
aposta o limite. Um homem que se preze
presume uns degraus abaixo
do limiar de pobreza. Um homem
a ver gente vencida pelo silêncio,
a morrer aos bocados.
Um homem à beira
do fim.
Rui Baião
LADRADOR, Averno / 2012
aposta o limite. Um homem que se preze
presume uns degraus abaixo
do limiar de pobreza. Um homem
a ver gente vencida pelo silêncio,
a morrer aos bocados.
Um homem à beira
do fim.
Rui Baião
LADRADOR, Averno / 2012
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