V
Um amigo é às vezes o deserto,
outras a água.
Desprende-te do ínfimo rumor
de agosto; nem sempre
um corpo é o lugar da furtiva
luz despida, de carregados
limoeiros de pássaros
e o verão nos cabelos;
é na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.
O real é a palavra.
Eugénio de Andrade
Branco no Branco, Editora Limiar, Setembro de 1984
19.1.16
11.1.16
recado
ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno almoço
Al Berto
HORTO DE INCÊNDIO, Assírio & Alvim. Lisboa, Março de 1977
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno almoço
Al Berto
HORTO DE INCÊNDIO, Assírio & Alvim. Lisboa, Março de 1977
9.1.16
A MESA
O jornal dobrado
sôbre a mesa simples;
a toalha limpa,
a louça branca
e fresca como o pão.
A laranja verde:
tua paisagem sempre,
teu ar livre, sol
de tuas praias; clara
e fresca como o pão.
A faca que aparou
teu lápis gasto;
teu primeiro livro
cuja capa é branca
e fresca como o pão.
E o verso nascido
de tua manhã viva,
de teu sonho extinto,
ainda leve, quente
e fresco como o pão.
João Cabral de Melo Neto
POESIA COMPLETA, 1940-1980, Prefácio de Óscar Lopes, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Maio de 1986
sôbre a mesa simples;
a toalha limpa,
a louça branca
e fresca como o pão.
A laranja verde:
tua paisagem sempre,
teu ar livre, sol
de tuas praias; clara
e fresca como o pão.
A faca que aparou
teu lápis gasto;
teu primeiro livro
cuja capa é branca
e fresca como o pão.
E o verso nascido
de tua manhã viva,
de teu sonho extinto,
ainda leve, quente
e fresco como o pão.
João Cabral de Melo Neto
POESIA COMPLETA, 1940-1980, Prefácio de Óscar Lopes, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Maio de 1986
3.1.16
da vida humana
4
para quê dar-te o sopro, o útil
sopro de respirares?
o espelho da homenagem, a
compostura da pose?
para quê escrever o exagero
do que és? inventar-te
num jardim das delícias, as torturas
que simulas? terás alma?
amaste alguém? sofreste?
para que hás-de cumprir-te ou ouvir música,
afivelar a máscara, a diferença
dos seus lugares comuns?
nenhuma loquaz
invenção te suscita.
Vasco Graça Moura
Os Rostos Comunicantes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984
para quê dar-te o sopro, o útil
sopro de respirares?
o espelho da homenagem, a
compostura da pose?
para quê escrever o exagero
do que és? inventar-te
num jardim das delícias, as torturas
que simulas? terás alma?
amaste alguém? sofreste?
para que hás-de cumprir-te ou ouvir música,
afivelar a máscara, a diferença
dos seus lugares comuns?
nenhuma loquaz
invenção te suscita.
Vasco Graça Moura
Os Rostos Comunicantes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984
2.1.16
O TER E O DAR
Não me peças, ó vida, o que não dás.
Se o que sempre pedi nunca me deste,
e ao que não me atrevera tu trouxeste
às minhas mãos sem jeito de o conter,
para que pedes o que não me dás?
Se nada tenho do que desejara
e tendo tanto por que não esperara,
como hei-de dar-te, sem jamais saber
que meu foi teu, que teu foi meu, que nosso
foi só de empréstimo, como hei-de ou posso,
entre o que tenho, decidir e dar?
E como ao que não tenho hei-de perder,
pelo que me darias a escolher
como se fora tempo de acabar?
1961
Jorge de Sena
PEREGRINATIO AD LOCA INFECTA 70 POEMAS E UM EPÍLOGO, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969
Se o que sempre pedi nunca me deste,
e ao que não me atrevera tu trouxeste
às minhas mãos sem jeito de o conter,
para que pedes o que não me dás?
Se nada tenho do que desejara
e tendo tanto por que não esperara,
como hei-de dar-te, sem jamais saber
que meu foi teu, que teu foi meu, que nosso
foi só de empréstimo, como hei-de ou posso,
entre o que tenho, decidir e dar?
E como ao que não tenho hei-de perder,
pelo que me darias a escolher
como se fora tempo de acabar?
1961
Jorge de Sena
PEREGRINATIO AD LOCA INFECTA 70 POEMAS E UM EPÍLOGO, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969
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