óleo sobre cimento, 534 x 261 cm
O motor do automóvel anda a trabalhar
num óleo no
seu lugar de garagem. Expressionista abstracto.
Sobre bagos de óleo escuro (de
mais uma noite em claro) dobro
os pneus do carro ao sair pela manhã apondo
ao seu Pollock gestos de um
Gracinda Candeias. Nesta tela abstracta
(que é o concreto do chão) os
olhos teimam em crer um archote um
fuzil
unindo as manchas mais cruas. Também assim
esta poesia.
João Luís Barreto Guimarães
LUZ ÚLTIMA, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, Fevereiro de 2006
25.3.12
22.3.12
AS SETE BICAS
O silêncio com as suas sete bicas
ou o lume anunciando a neve
sabem da cumplicidade
do sol e da cal, da boca e da sede.
Eugénio de Andrade
PEQUENO FORMATO, Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Fevereiro de 1997
ou o lume anunciando a neve
sabem da cumplicidade
do sol e da cal, da boca e da sede.
Eugénio de Andrade
PEQUENO FORMATO, Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Fevereiro de 1997
18.3.12
A CRIANÇA QUE RI
LXV
Carlos Torres Figueiredo
A CRIANÇA QUE RI, PRÉMIO DE POESIA EUGÉNIO DE ANDRADE 2011, Modo de Ler - Editores e Livreiros, Lda, Porto, 2012
Nunca nada dito. Sempre nada dito. Calar de vez o silêncio. Se eu che-
gar até onde não cheguei, cheguei. Se não até mim tu chegas. Se fosse
minha a tua noite, seria nossa a nossa noite.
Sempre nada dito.
Concretizar o sonho de ir contigo até ao quarto da luz clara. Tal e qual
o cântico da manhã. O que resta, desdenhemo-lo. Desdenhemos a cabe-
ça pensante de quatro patas. A bactéria assassina que anda nos nossos
passos e o mundo da fantasia negra. Esqueçamos tudo, rapariga, juntos
faremos uma viagem de comboio até à tua e até à minha terra. Temos o
pincel e a espátula. A folha e a caneta. O gesto certeiro. Nenhum vestígio
deixaremos para trás deste mal que nos aflige. Aonde tu foste os meus
olhos seguir-te-ão. Serei uma sombra parda a abrir-te caminho até ao sol.
Não te enganes que na terra do nunca nada dito se não falarmos eu
não te encontro. Na terra do nunca nada dito se as palavras falharem
eu não te encontro. É uma questão de ângulo. E de eu te dizer, está na
hora. E de tu mo dizeres.
A CRIANÇA QUE RI, PRÉMIO DE POESIA EUGÉNIO DE ANDRADE 2011, Modo de Ler - Editores e Livreiros, Lda, Porto, 2012
14.3.12
FUMO
Sigo-te:
Perco o rumo
Olhas-me:
Fico cego
Prendes-me:
Sou a algema
Ardes-me:
Já sou fumo
João Habitualmente
Os Animais Antigos, edição objecto cardíaco - casa para as artes, Sociedade Unipessoal, Lda, Vila do Conde, Janeiro de 2006
Perco o rumo
Olhas-me:
Fico cego
Prendes-me:
Sou a algema
Ardes-me:
Já sou fumo
João Habitualmente
Os Animais Antigos, edição objecto cardíaco - casa para as artes, Sociedade Unipessoal, Lda, Vila do Conde, Janeiro de 2006
10.3.12
A CONSTRUÇÃO DO CORPO
Sempre a tentativa nunca vã...
O equilíbrio musical dos instrumentos,
a paciência do teu pulso suave e certo,
o teu rosto mais largo e a calma força
que sobe e que modelas palmo a palmo,
rio que ascende como um tronco em plena sala.
A tua casa habita entre o silêncio e o dia.
Entre a calma e a luz o movimento é livre.
Acordar a leve chama veia a veia,
erguê-la do fundo e solta propagá-la
aos membros e ao ventre, até ao peito e às mãos
e que a cabeça ascenda, cordial corola plena.
Todo o corpo é uma onda, uma coluna flexível.
Respiras lentamente. A terra inteira é viva.
E sentes o teu sangue harmonioso e livre
correr ligado à água, ao ar, ao fogo lúcido.
No interior centro cálido abre-se a flor de luz,
rigor suave e óleo, música de músculos, roda
lenta girando das ancas ao busto ondeado
e cada vez mais ampla a onda livre ondula
a todo o corpo uno, num respirar de vela.
Sobre a toalha de água, à luz de um sol real,
dança e respira, respira e dança a vida,
o seu corpo é um barco que o próprio mar modela.
António Ramos Rosa
A CONSTRUÇÃO DO CORPO, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969
O equilíbrio musical dos instrumentos,
a paciência do teu pulso suave e certo,
o teu rosto mais largo e a calma força
que sobe e que modelas palmo a palmo,
rio que ascende como um tronco em plena sala.
A tua casa habita entre o silêncio e o dia.
Entre a calma e a luz o movimento é livre.
Acordar a leve chama veia a veia,
erguê-la do fundo e solta propagá-la
aos membros e ao ventre, até ao peito e às mãos
e que a cabeça ascenda, cordial corola plena.
Todo o corpo é uma onda, uma coluna flexível.
Respiras lentamente. A terra inteira é viva.
E sentes o teu sangue harmonioso e livre
correr ligado à água, ao ar, ao fogo lúcido.
No interior centro cálido abre-se a flor de luz,
rigor suave e óleo, música de músculos, roda
lenta girando das ancas ao busto ondeado
e cada vez mais ampla a onda livre ondula
a todo o corpo uno, num respirar de vela.
Sobre a toalha de água, à luz de um sol real,
dança e respira, respira e dança a vida,
o seu corpo é um barco que o próprio mar modela.
António Ramos Rosa
A CONSTRUÇÃO DO CORPO, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969
8.3.12
MULHER
Metade mulher metade pássaro
Metade anémona metade névoa
Metade água metade mágoa
Metade silêncio metade búzio
Metade manhã metade fogo
Metade jade metade tarde
Metade mulher metade sonho
Jorge Sousa Braga
A FERIDA ABERTA, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio 2001
Metade anémona metade névoa
Metade água metade mágoa
Metade silêncio metade búzio
Metade manhã metade fogo
Metade jade metade tarde
Metade mulher metade sonho
Jorge Sousa Braga
A FERIDA ABERTA, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio 2001
7.3.12
ANIMAIS DOMÉSTICOS
Deixas os sapatos pelo chão
e eu tropeço neles
como se duas serpentes
trocassem de olhar entre si
para me puxarem o corpo
para o vazio soerguido dos tempos
abertos na carpete os livros
a lareira a várias vozes
indiferente ao mar
como resina branda e atenta
suspensa da garganta muda
o mel da luz passada
exagera o meu lado fora de mim
qual cigarra arremessando sedimentos
domésticos e alheios
os sapatos mordem a canela dos meus nervos
improváveis, penetrantes
tilintam nesta memória
de quem respira sempre no escuro
José Manuel de Vasconcelos
A MÃO NA ÁGUA QUE CORRE, Assírio & Alvim, Lisboa, Março 2011
e eu tropeço neles
como se duas serpentes
trocassem de olhar entre si
para me puxarem o corpo
para o vazio soerguido dos tempos
abertos na carpete os livros
a lareira a várias vozes
indiferente ao mar
como resina branda e atenta
suspensa da garganta muda
o mel da luz passada
exagera o meu lado fora de mim
qual cigarra arremessando sedimentos
domésticos e alheios
os sapatos mordem a canela dos meus nervos
improváveis, penetrantes
tilintam nesta memória
de quem respira sempre no escuro
José Manuel de Vasconcelos
A MÃO NA ÁGUA QUE CORRE, Assírio & Alvim, Lisboa, Março 2011
4.3.12
50 ANOS
Talvez escreva
poemas
que já li
que outros já escreveram
que eu mesma já escrevi
esqueço-me
da minha vida
Adília Lopes
Apanhar ar, Exemplar n.º 358/400, Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro de 2010
poemas
que já li
que outros já escreveram
que eu mesma já escrevi
esqueço-me
da minha vida
Adília Lopes
Apanhar ar, Exemplar n.º 358/400, Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro de 2010
2.3.12
A Terceira Miséria
23.
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
Hélia Correia
A Terceira Miséria, Relógio D'Água Editores, Fevereiro de 2012
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
Hélia Correia
A Terceira Miséria, Relógio D'Água Editores, Fevereiro de 2012
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