Ainda que aquela unha
arranhe a pedra de jaspe
não importa não é minha
mão me dói por isso o chispe
Por isso quem quiser asse-o
que eu vou andar de barco
e empregar assim o ócio
que vem comigo do berço
Vou à vela vem o vento
e eu grito viva o vício
e mesmo este ar eu minto
e dou-lhe o tom violáceo
Do jogo ninguém me livra
pois caio nele de borco
e palavra por palavra
assim alinho o meu verso
Ruy Belo
HOMEM DE PALAVRA(S), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Janeiro de 1970
27.2.16
25.2.16
SARDENTA
Tu, nesse corpo completo,
Ó láctea virgem doirada!
Tens o linfático aspecto
Duma camélia melada.
Cesário Verde
Eugénio de Andrade, Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Campo das Letras - Editores, S. A., Porto, Novembro de 1999
Ó láctea virgem doirada!
Tens o linfático aspecto
Duma camélia melada.
Cesário Verde
Eugénio de Andrade, Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Campo das Letras - Editores, S. A., Porto, Novembro de 1999
24.2.16
ESCADA SEM CORRIMÃO
É uma escada em caracol
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
mas nunca passa do chão.
Os degraus, quanto mais altos,
mais estragados estão.
Nem sustos nem sobressaltos
servem sequer de lição.
Quem tem medo não a sobe.
Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
o lastro do coração.
Sobe-se numa corrida.
Correm-se p'rigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
a escada sem corrimão.
David Mourão-Ferreira
OBRA COMPLETA 1948-1988, Introdução de Eduardo Prado Coelho, Editorial Presença, Lda., 3.ª edição, Lisboa, Maio, 1997
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
mas nunca passa do chão.
Os degraus, quanto mais altos,
mais estragados estão.
Nem sustos nem sobressaltos
servem sequer de lição.
Quem tem medo não a sobe.
Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
o lastro do coração.
Sobe-se numa corrida.
Correm-se p'rigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
a escada sem corrimão.
David Mourão-Ferreira
OBRA COMPLETA 1948-1988, Introdução de Eduardo Prado Coelho, Editorial Presença, Lda., 3.ª edição, Lisboa, Maio, 1997
23.2.16
O MEU AMIGO CAUTERIZA
O meu amigo cauteriza
Vende caro o seu paleio
Antes de morder o freio
Sabe bem o chão que pisa
Assim falava do palco
Zaratustra o Comovido
Cada vez mais convencido
Que subiria mais alto
Por ter pescoço comprido
Já se julgava contralto
José Afonso
Textos e canções, 3.ª Edição revista, Organização Elfriede Engelmayer (1.ª Edição, Organização J. H. Santos Barros), Relógio D'Água Editores, Outubro de 2000
Vende caro o seu paleio
Antes de morder o freio
Sabe bem o chão que pisa
Assim falava do palco
Zaratustra o Comovido
Cada vez mais convencido
Que subiria mais alto
Por ter pescoço comprido
Já se julgava contralto
José Afonso
Textos e canções, 3.ª Edição revista, Organização Elfriede Engelmayer (1.ª Edição, Organização J. H. Santos Barros), Relógio D'Água Editores, Outubro de 2000
22.2.16
DEMÓCRITO
Prefiro entender o que sei
a poder ser, na Pérsia, rei.
Eugénio Lisboa
O Ilimitável Oceano (Algumas Observações), Quasi Edições, Março 2001
a poder ser, na Pérsia, rei.
Eugénio Lisboa
O Ilimitável Oceano (Algumas Observações), Quasi Edições, Março 2001
20.2.16
Aguardarás o tempo...
Aguardarás o tempo da vindima:
que as uvas sofram, como bem-fazeja
dádiva férvida, o calor de enlevos
que aproximar vai o verão do fim.
E só depois as poderás colher,
e só depois tu poderás fremindo
esmagá-las sem dor com a leveza
com que se beija um corpo em cio unindo-se.
Aguarda pois. E faz da tua espera
a certeza insuspeita de que um dia
há-de num copo rutilar o vinho -
e nos teus dedos em papel modesto
fugirá o mistério da vindima
transformado nos versos que nutriste.
António Salvado
Um fio de água, Antologia mínima I, Organização Nicolau Saião, Sirgo, Castelo Branco, 2012
que as uvas sofram, como bem-fazeja
dádiva férvida, o calor de enlevos
que aproximar vai o verão do fim.
E só depois as poderás colher,
e só depois tu poderás fremindo
esmagá-las sem dor com a leveza
com que se beija um corpo em cio unindo-se.
Aguarda pois. E faz da tua espera
a certeza insuspeita de que um dia
há-de num copo rutilar o vinho -
e nos teus dedos em papel modesto
fugirá o mistério da vindima
transformado nos versos que nutriste.
António Salvado
Um fio de água, Antologia mínima I, Organização Nicolau Saião, Sirgo, Castelo Branco, 2012
19.2.16
CORDA
Ninguém tem nome: apenas uma escura
corda de sons que prende o corpo e deixa
queimaduras na pele, esse é o preço
de ser nomeado porque o chamamento
de cada vez se torna mais ardente
até ser casa ou roupa ou outra pele
que fere o corpo e finalmente o veste
do nome que é o dele
Gastão Cruz
ÓXIDO, Assírio & Alvim, Porto, Setembro de 2015
corda de sons que prende o corpo e deixa
queimaduras na pele, esse é o preço
de ser nomeado porque o chamamento
de cada vez se torna mais ardente
até ser casa ou roupa ou outra pele
que fere o corpo e finalmente o veste
do nome que é o dele
Gastão Cruz
ÓXIDO, Assírio & Alvim, Porto, Setembro de 2015
17.2.16
GUERRA E PAZ
Varrida pela chuva a álea rasa,
sai o inverno nesta primavera.
O tempo quis negar-nos sua casa,
a História faz de farsa ou de quimera
prometida por doutos e por santos
que nos levam, de cegos, ao abismo:
folheio pela noite fólios tantos,
que já não sei se sonho no que cismo.
Este tempo não sabe da desgraça,
repete sem cessar a ladainha:
liberdade que nasce em cada praça,
alvorecer enfim que se avizinha!
Mas no amanhecer, entre destroços,
o tempo varre cinzas, restos, ossos.
Luís Filipe Castro Mendes
OUTRO ULISSES REGRESSA A CASA, Assírio & Alvim, Porto, Fevereiro 2016
sai o inverno nesta primavera.
O tempo quis negar-nos sua casa,
a História faz de farsa ou de quimera
prometida por doutos e por santos
que nos levam, de cegos, ao abismo:
folheio pela noite fólios tantos,
que já não sei se sonho no que cismo.
Este tempo não sabe da desgraça,
repete sem cessar a ladainha:
liberdade que nasce em cada praça,
alvorecer enfim que se avizinha!
Mas no amanhecer, entre destroços,
o tempo varre cinzas, restos, ossos.
Luís Filipe Castro Mendes
OUTRO ULISSES REGRESSA A CASA, Assírio & Alvim, Porto, Fevereiro 2016
10.2.16
LISTA DAS PREFERÊNCIAS DE ORGE
Alegrias, as não medidas.
Peles, as não extorquidas.
Histórias, as ininteligíveis.
Conselhos, os inexequíveis.
Solteiras, as jovens.
Casadas, as que enganam os homens.
Orgasmos, os não síncronos.
Ódios, os recíprocos.
Domicílios, os permanentes.
Adeuses, os sub-ardentes.
Artes, as não rendáveis.
Professores, os enterráveis.
Prazeres, os que exprimir se podem.
Fins, os de segunda ordem.
Inimigos, os sensíveis.
Amigos, os incorruptíveis.
Cores, o rubro.
Meses, Outubro.
Elementos, o fogo.
Deuses, o monstro.
Decadentes, os louvaminheiros.
Mensagens, os mensageiros.
Vidas, as lúcidas.
Mortes, as súbitas.
Bertolt Brecht
Poemas, Selecção, estudos e notas de Arnaldo Saraiva, Tradução (com a colaboração de Sylvie Deswarte), Editorial Presença, Lisboa.
Peles, as não extorquidas.
Histórias, as ininteligíveis.
Conselhos, os inexequíveis.
Solteiras, as jovens.
Casadas, as que enganam os homens.
Orgasmos, os não síncronos.
Ódios, os recíprocos.
Domicílios, os permanentes.
Adeuses, os sub-ardentes.
Artes, as não rendáveis.
Professores, os enterráveis.
Prazeres, os que exprimir se podem.
Fins, os de segunda ordem.
Inimigos, os sensíveis.
Amigos, os incorruptíveis.
Cores, o rubro.
Meses, Outubro.
Elementos, o fogo.
Deuses, o monstro.
Decadentes, os louvaminheiros.
Mensagens, os mensageiros.
Vidas, as lúcidas.
Mortes, as súbitas.
Bertolt Brecht
Poemas, Selecção, estudos e notas de Arnaldo Saraiva, Tradução (com a colaboração de Sylvie Deswarte), Editorial Presença, Lisboa.
8.2.16
VIVER SEMPRE TAMBÉM CANSA
Viver sempre também cansa.
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...
José Gomes Ferreira
Eugénio de Andrade, ANTOLOGIA PESSOAL DA POESIA PORTUGUESA, Campo das Letras -Editores, S.A., Porto, Novembro de 1999
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...
José Gomes Ferreira
Eugénio de Andrade, ANTOLOGIA PESSOAL DA POESIA PORTUGUESA, Campo das Letras -Editores, S.A., Porto, Novembro de 1999
4.2.16
CICLO TERCEIRO
6.
O rio seca. Ouvem-se sirenes.
Os barcos apitam como se
tivessem chegado os dias de
festa. Os pedreiros não têm
braços para todo o lixo. Nada
distingue as ruas de um grande
vale de narcisos.
Jaime Rocha
LÂMINA [CICLO DAS AVES], Língua Morta, Março de 2014
O rio seca. Ouvem-se sirenes.
Os barcos apitam como se
tivessem chegado os dias de
festa. Os pedreiros não têm
braços para todo o lixo. Nada
distingue as ruas de um grande
vale de narcisos.
Jaime Rocha
LÂMINA [CICLO DAS AVES], Língua Morta, Março de 2014
1.2.16
BAH!
Fora os livros não vejo
muita outra coisa
a que possa chamar
minha propriedade
a gilete? o pente
imitação tartaruga? a tesoura
das unhas?
nem mesmo a roupa
enchendo todo um armário
que se queima com o suor
gasta rasga
desfia em pouco tempo
condenada
por um corpo infeliz
e quando nova a estrear
faria talvez já
as delícias do adelo
álbuns de fotos?
estojo caneta-lapiseira?
pesa-papéis
deitando a sua neve falsa
sobre o castelo alemão?
inclusive o carro
envelhece mês a mês
sem uso: o prazer de guiar
é coisa dos anúncios
e a gasolina cara
e para quê tirá-lo da rua
para arrumá-lo aonde?
guiem agora as filhas
Lisboa
15-II-94
Vilagarcia de Arousa
31-VIII-95
Fernando Assis Pacheco
RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Novembro 2003
muita outra coisa
a que possa chamar
minha propriedade
a gilete? o pente
imitação tartaruga? a tesoura
das unhas?
nem mesmo a roupa
enchendo todo um armário
que se queima com o suor
gasta rasga
desfia em pouco tempo
condenada
por um corpo infeliz
e quando nova a estrear
faria talvez já
as delícias do adelo
álbuns de fotos?
estojo caneta-lapiseira?
pesa-papéis
deitando a sua neve falsa
sobre o castelo alemão?
inclusive o carro
envelhece mês a mês
sem uso: o prazer de guiar
é coisa dos anúncios
e a gasolina cara
e para quê tirá-lo da rua
para arrumá-lo aonde?
guiem agora as filhas
Lisboa
15-II-94
Vilagarcia de Arousa
31-VIII-95
Fernando Assis Pacheco
RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Novembro 2003
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