22.12.21
CARTUCHO DE CASTANHAS
e de uma cidade molhada esse cheiro
ímpar de um pequeno carro de cor neutra
envolto em fumo. Brasas
no estalido de cascas aquecendo
as nossas mãos friorentas. O sabor
macio e doce confortava
as árvores despidas. Esvaziado o cartucho
ficava no corpo a quentura
de um abraço materno
ou beijo enamorado.
Inês Lourenço
As Palavras Beijam Sem Carga Viral, Editor Câmara Municipal do Porto - Museu da Cidade, Porto, agosto de 2021
20.12.21
PANCADAS SURDAS
articular a alma
num problema difícil de palavras-cruzadas,
umas vezes na vertical, outras na horizontal,
passando a cada passo
por uns grandes quadrados negros,
tropeçando em amigos esquecidos.
Circunspectos habitualmente
por vezes insinceros
cheios de marcas de pancadas surdas.
Perguntamos como foi
e uns dizem
que escorregaram na banheira
e outros dizem
que escorregaram na rua,
esta terra anda cheia de cascas de banana.
De Akáthistos Deipnos, 1978
Michális Ganas
MANUEL RESENDE, A GRÉCIA DE QUE FALAS..., ANTOLOGIA DE POETAS GREGOS MODERNOS, Língua Morta, Fevereiro de 2021
19.12.21
PEDRA-FINAL
tantos enredos
até ficarmos para sempre
quedos!
Para sempre? Não!
Que outros (mínimos) seres
já trabalham na nossa remoção.
Alexandre O'Neill
DE OMBRO NA OMBREIRA, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969
16.12.21
[no mês de maio pescávamos]
bogas e trutas no rio olo
água fria água limpa
impaciente a brunir os seixos
no regresso em terras de basto
bebíamos vinho
o mundo parecia outro
como se fossemos tocados
pelo sopro da imortalidade
As coisas comuns, Modo de Ler - Cruz Santos & Fernandes Marinho, Lda., Novembro de 2021
12.12.21
O Banqueiro
nem O Banqueiro Anarquista,
em Durban ou em Lisboa,
adios hasta la vista!
11.12.21
SILÊNCIO
é o silêncio e seu bálsamo. Momentos
que a própria música conspurcaria.
Mas há silêncio e silêncio. O que apeteço
não é o silêncio que alguma autoridade
decreta, seja direcção-geral, escola, igreja.
O silêncio que ambiciono há-de ser
sereno como nuvens e ervas bravas
e água em repouso e asas imóveis
de borboleta.
Há-de ser como o doce cansaço
que, depois que o vento tem passado,
fica a cintilar sobre as coisas
que o vento alvoroçou.
A. M. Pires Cabral
Caderneta de Lembranças, Edições Tinta-da-China, Lda., Lisboa, Novembro de 2021
7.12.21
O RELÓGIO
Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.
O tempo que foi constante
no meu contratempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.
Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora
OBRA POÉTICA (5.ª edição), Editorial «Avante», Lisboa, 1994
22.11.21
[No meu tempo, ah, dizer no meu]
tempo é engraçado, havia pais
que levavam os filhos às putas.
Sei que houve gente que adorou
e outra que ficou traumatizada
para o resto da vida. O meu pai não
me levou a nenhuma coisa dessas,
mas deu-me o primeiro vinho a provar
e ensinou-me a escrever. Eu
depois inventei o resto.
Helder Moura Pereira
antologia de poemas publicados na Companhia das Ilhas - 2012-2018
selecção, organização e nota prévia de José Manuel Teixeira da Silva,
13.11.21
Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada
V
Escrever nem uma coisa
Nem outra -
A fim de dizer todas -
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.
Compêndio para Uso dos Pássaros, Poesia Reunida 1937-2004, Quasi Edições, Junho de 2007
9.11.21
PALAVRAS NUNCA
Sim, posso escrever trigo,
e trémulo, e de oiro,
porém nunca uma espiga
brotará do meu verso
como brota de um sulco.
E escrever pintassilgo
e trino, porém nunca
soará nos meus versos
nenhum canto.
Nunca as nossas palavras
cativarão as coisas.
Acercar-se-ão delas,
andarão em seu torno
como uma brisa débil...
e voltarão vazias.
Com um perfume acaso,
com um eco, com uma
memória desbotada...;
porém as coisas sempre
ficarão no seu mundo
e as palavras nunca
serão mais que palavras.
Miguel D'Ors
O Fiasco Perfeito, Apresentação, selecção e tradução de Luís Pedroso, Língua Morta / Poesia Incompleta, Maio de 2021
3.11.21
Epigrama
chegando satura,
de aguentar
da falta de ar.
29.10.21
neve interior
coluna vertebral em tudo
que te mostrou a cifose do mundo.
Afinal, amo-te
não era vocábulo
mas raposa que decifrava
a geometria de um poço.
Nem Einstein
conseguiu calcular a velocidade
que habita a derrocada de Agosto.
Não te admires,
a Física nunca teve sentimentos.
O coração,
catálogo para desabar.
neve interior, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, 2.ª Edição, 07 de Outubro de 2021
5.10.21
Fernando Echevarría (1929-2021)
campeia além de si e a si estranho.
A luz, à volta, cumpre só vir do susto
de ver-se, de repente, separado
do outro corpo de jacência, mudo,
e onde ainda reinaria o espaço.
Que aqui tudo é primeiro. Ou tudo último.
Porque o tempo ficou naquele lado
em que se conta o percurso
por pontos sucessivos do seu trânsito.
Agora, somos prumo.
Vultos duríssimos durando,
com todo o corpo fora de nós. No pulso
que descobre outros em sua luz de espanto.
Sobre os Mortos, Edições Afrontamento, Porto, 1991
2.10.21
FICAR NA SOMBRA
e olhamos por ti
nas ondas da noite
Esperamos desde sempre
são as primeiras
últimas coisas
Ficar na sombra
de mundo a mundo
ou arder em eclipse
O que queiram, enfim, dizer
as palavras aparecer
desaparecer, deslumbrar
MÚSICA DE ANÓNIMO [poesia, 2001- 2009], Companhia das Ilhas, 2015
14.9.21
SEGREDO
A Rosa é o órgão sexual duma planta extremamente evoluída.
Ana Hatherly
Nada mais havendo que te desse,
oferecia-te uma rosa
em botão amargo e verde ainda
num caule muito longo em solitário altíssimo
e o tempo
desfolhando o segredo lento dessa rosa
abrindo-se madura
em flor.
Rita Taborda Duarte
Roturas e Ligamentos, Ilustrações e logótipo convidado: André da Loba, edição Abysmo. Lisboa, Novembro 2015
8.9.21
VIAGEM NA GRÉCIA
Demos com um pastor à beira-estrada,
Perito das ovelhas e de nada,
Mostrando os podres dentes pastoris.
Infelizmente o sol de mau cariz
Foi que nos trouxe à erma serra parda,
Turistas enfadados de alma à banda,
Heróis com menos olhos que nariz.
Falou dos alemães, da guerra suja,
Das casas destruídas, do penar,
Da morte que com vida nos intruja.
Os figos ali, e ele a falazar!
Ele que se vá antes que o sol fuja,
Que eu quero roubar figos pró jantar!
Poesia reunida, Edições Cotovia, Lda., Abril de 2018
5.9.21
Futebol Americano
Aleluia!
Funciona.
Rebentámos-lhes com aquela merda toda.
Rebentámos-lhes com a merda pelo cu acima
Até lhes sair pela porra das orelhas.
Funciona.
Rebentámos-lhes até com a merda.
Eles sufocaram na própria merda!
Aleluia.
O Senhor seja louvado por todas as coisas boas.
Desfizemos aquela porra toda em merda.
Estão a comê-la.
O Senhor seja louvado por todas as coisas boas.
Rebentámos-lhes os tomates em estilhaços de pó,
Na porra de estilhaços de pó.
Conseguimos.
Agora quero que venhas aqui e me beijes
na boca.
Agosto de 1991
Harold Pinter
Guerra, Tradução de Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, Quasi edições
22.8.21
[mutações]
⁕
também tu
estás de passagem
peregrino sobre a terra
agora lagarta
ontem crisálida
amanhã borboleta
Manuel Silva-Terra
21.8.21
EM TODO O ACASO
Remancha e desmancha
O teu belo plano
De escrever p'la certa.
Não há «p'la certa», poeta!
Mas em todo o acaso acerta
Nem que seja a um verso por ano...
POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007
18.8.21
[Poema]
silencioso e só está sentado
e lê num livro velho
a sua própria história
EDOI LELIA DOURA antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, organizada por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, Janeiro de 1985
15.8.21
[Não esbanjem comigo o odor da mirra,]
nem ofereçam coroas de flores,
nem acendam a pira funerária,
tudo isso é desperdício; ofereçam-me
presentes, se quiserem, enquanto
estiver vivo - mas espalhar cinzas
no vinho torná-lo-á lama
e dele não beberão os mortos.
Anónimo
Poemas da Antologia Grega, versões de José Alberto Oliveira, Porto Editora, Fevereiro de 2018
13.8.21
[eles estão a morrer de todas as maneiras]
mas diga-me: não há apenas uma só maneira:
a maneira cega?
Herberto Helder
10.8.21
CASA
que ferve no gasómetro do pátio
e envolve este soneto
num cheiro de laranjas com sulfato
(as asas pantanosas dos insectos
refectidas nos olhos, no olfacto,
a febre a consumir o meu retrato,
a ameaçar os tectos
da casa que também adoecia
ao contágio da lama
e enfim morria
nos alicerces como numa cama)
a pedregosa luz da poesia
que reconstrói a casa, chama a chama.
Carlos de Oliveira
SOBRE O LADO ESQUERDO, Publicações Dom Quixote, Maio de 1969
9.8.21
[queria de ti um país de bondade e de bruma]
queria de ti o mar de uma rosa de espuma
6.8.21
[E me disseste: vem. E havia]
alguns despojos sobre a areia, algumas
ressentidas grinaldas
no limiar das têmporas. Havia
alguns gestos suspensos, um cofre
de esmeraldas vermelhas, um torpor
nos membros retardados. E havia
um colar para as mãos, uma colina
para os lábios e uma flor
intacta perfumando
o silêncio, à beira
de indizíveis planícies.
4.8.21
GULA
devoramos a pele delicada da lágrima.
Prometemos não sofrer,
não sentir, não ceder.
Comemos mais abaixo o coração.
Eufeme n.º 20 Magazine de Poesia (Julho/Setembro 2021)
1.8.21
MESTRES
VIII
Eis, pois, os Mestres, os senhores da terra
dura e impermeável, gasta e morta,
a suja maravilha dos humanos.
Hélia Correia
Acidentes, Relógio D'Água Editores, Novembro de 2020
29.7.21
Um vento surdo liga
o A e o B. É leve o alfabeto.
Do figo traz o estorninho
a polpa. Leviano universo,
mais do que leve, airado
pedestal de nula estátua.
Contudo, em um momento existem
o vento, o voo, os pontos
de partida e de chegada.
Em um momento, digo. Um só.
Depois a nova coisa ignora
outra coisa anterior. Não há.
Memória Indescritível, Gótica, Lisboa, 2000
14.7.21
A RAPARIGA
Como uma bilha cheia de leite ao sol
Uma rapariga à janela ocultamente
Dá os seus seios às pombas.
Repletos palpitam os seios
Espetam-se os mamilos
Titilam-nos as aves
E subitamente o leite transborda.
Andréas Embirikos
A GRÉCIA DE QUE FALAS... Antologia de Poetas Gregos Modernos, de Manuel Resende, Recolha e organização de Rui Manuel Amaral, Posfácio de Tatiana Faia, Língua Morta, Fevereiro de 2021
10.7.21
ESTORVO
Paula Sinos
7.7.21
AO CONTRÁRIO DE NEWTON
em contraluz. Depois, devagar,
tirei o vidro de volta da água
e deitei-o fora. A água formou
um cilindro suspenso no ar,
a contraluz. Através da sua
transparência pude ver o céu,
o branco das nuvens, a linha
abstracta de um voo de ave;
e depois a própria água, limpa
de tudo o que os meus olhos
tinham visto através dela. Por
fim, sorvi devagar essa água,
como se ainda estivesse dentro
do copo; e no seu sem sabor
provei o céu, o branco das
nuvens, e o voo dessa ave que
me levou até ao horizonte,
como se a água se pudesse
tirar de dentro de um copo
e ficar suspensa.
Nuno Júdice
Nervo/11 colectivo de poesia (maio/agosto de 2021)
5.7.21
És como uma terra
que nunca ninguém disse.
Não esperas nada
a não ser a palavra
que brotará do fundo
como fruto entre os ramos.
Um vento que se aproxima.
Coisas secas e mortas
embaraçam-te e vão no vento.
Membros, palavras antigas.
Tremes no verão.
29 de Outubro de 1945
*
Tu sei come una terra
che nessuno ha mai detto.
Tu non attendi nulla
se non la parola
che sghorgherà dal fondo
come un frutto tra i rami.
C'è un vento che ti giunge.
Cose secche e rimorte
t'ingombrano e vanno nel vento.
Membra e parole antiche.
Tu tremi nell'estate.
29 ottobre 1945
Virá a morte e terá os teus olhos, Traduções de Rui Caeiro e Rui Miguel Ribeiro. Posfácio de Rui Caeiro, edições saguão, Lisboa, Abril de 2021
3.7.21
Ó MUNDO BELO E PERDIDO!
Oh, mia patria si bella e perduta
VERDI, Nabucco
Ó mundo belo e perdido,
outrora vivo e garboso,
hoje, da peste mordido,
por descaso criminoso
de quem pensa fabricar
e outros aniquilar -
micróbios de estarrecer!
O mundo está hoje nas mãos
de loucos enraivecidos,
que andam pelos desvãos,
do mundo, empedernidos,
tentando acumular
montes de obscena riqueza
e aos pobres triplicar
uma já grande pobreza!
Esta gente vai à missa,
esta gente quer o céu
e nem sequer desperdiça
o mais pequeno troféu.
Querem Deus e o Dinheiro,
o gozo e o perdão;
para eles, o mundo inteiro,
para os outros, nem um pão.
Neste mundo em desconcerto,
onde infames empresários
congeminam desacertos
e bizantinos cenários,
pondo em risco o mundo inteiro,
mas enchendo as algibeiras,
- vale tudo prò embusteiro,
fértil só em bandalheiras!
Ó mundo belo e perdido,
noutro tempo tão formoso
e agora corroído,
devastado e perigoso!
Possas tu erguer-te, belo,
de novo, forte e seguro.
Possa todo este flagelo,
saindo, deixar-te puro!
24.05.2020
Eugénio Lisboa,
depois de ouvir, mais uma vez, o «Coro dos escravos», da ópera Nabucco, de
Verdi, num momento emocionante da vida italiana.
Poemas em Tempo de Peste, Guerra e Paz, Editores, S. A., Lisboa, Setembro de 2020
13.6.21
Sol nulo dos dias vãos
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!
Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!
Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguém!
Fernando Pessoa
Obra Poética [Cancioneiro], I Volume, Círculo de Leitores, 1986
1.6.21
CÃES
Cães batidos
ganindo guinando
correndo atrás dos seus latidos
como de ossos
Daniel Jonas
Cães de Chuva, Assírio & Alvim, Porto, Fevereiro de 2021
30.5.21
O poeta
Procuro na linguagem (ainda)
a poesia desse ourives-gravador
o fazedor exímio dos versos onde vibra
a imagem tensa ígnea e viva
de uma arte talvez perdida
mas por ele mantida como densa
água até ao fim da existência
Procuro ao lê-lo recuperar a leveza
ou o peso da poesia livre
dos tortuosos caminhos do amor
Com o poeta tive a lição de fogo
o cristal e a chama A pessoana dor
lida a que vale a pena projectar:
o selo de água o som crepuscular
skin deep, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Março de 2021
29.5.21
POEMA QUASE INÉDITO
da nossa alegria, a casa comum
sem rua e sem portas. A casa
onde entramos pesados
e adormecemos liber(a)tados.
Ali está a casa, o longo namoro
entre a chama e a fúria desejada.
A casa do universo,
da tua boca e seus saberes:
por nós aconchegados
e ao vento disseminados.
Aqui está a casa, o movimento
lento do corpo no corpo,
a imensidão fraterna e impensada...
Aí tendes a vossa casa:
e dentro dela toda a nudez
e a alegria desejada.
MOROSIDADE DO FOGO, Editora Labirinto, Fafe, 2021
27.5.21
monólogo do estrangeiro
nunca vi pão transformando-se em rosas
nunca ouvi vozes no alto da montanha
nem anjos à minha volta
tocando cítara
em monges profetas santos
mas tudo me parecia exterior
longínquo mesmo
de milagres sei
no entanto
esta hipótese de ter podido ser nada
mas afinal todos os dias abrir os olhos
abrir os olhos e ver
árvores rios pessoas
enfim
este milagre imenso
que diariamente vou vivendo
o melhor que consigo
e sei
18.5.21
[O hálito do Tâmega, mais intenso ao fim da tarde,]
nos saltos dos escalos. Uma bolinha de broa trazia o
[despique,
o rapaz e o rio. Eu amava ver a chuva a cair sobre o rio
e os peixes vinham à tona beijar os pingos. Depois do
[açude
escura. Teias de aranha nas covas e peixes lentos.
O guarda-rios pintava as pedras do côrrego.
O rio tinha alguns pequenos açudes que eram afinal
[murmúrios.
Adelino Ínsua
Decantações, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Dezembro de 2020
11.5.21
ESTRADA DE CINZA [O vinho não existe sem veneno]
5.5.21
DADOS RECENTES
De uma fatalidade
Inverosímil,
Irreversível.
José Pascoal
BRANZA, Editorial Minerva, Lisboa, Agosto de 2019
2.5.21
AS MÃES
As mães são
as cuidadoras.
A elas
é dado o barro
com que moldam as formas
as criaturas
cada qual com a sua vida...
Vidas longas
vidas breves
as mães cuidadoras
são cegas
não dizem às criaturas
o tempo dado
de espera
Yvette K. Centeno
DIZER, Eufeme Poesia, Fevereiro de 2021, Leça da Palmeira - Portugal
23.4.21
Os livros
20.4.21
Nos rios / In den Flüssen
lanço a rede, que tu
hesitante carregas com
sombras
escritas por pedras.
*
IN DEN FLÜSSEN nördlich der Zukunft
werf ich das Netz aus, das du
zögernd beschwerst
mit von Steinen geschriebenen
Schatten.
Paul Celan
Não Sabemos mesmo O Que Importa - Cem Poemas, Tradução e Posfácio de Gilda Lopes Encarnação, Relógio D'Água Editores, Outubro de 2014
17.4.21
AR LIVRE
no fumo do seu peso,
perto, lá andava ela nua a cavalgar o antílope,
com uma asa direita outra caída.
E a amazona seguia...
e deixava a boca no sumo das laranjas.
Os olhos verdes no mar.
O corpo em a nuvem das alturas
- a guardadora
da sempre nova faísca incendiária!
EDOI LELIA DOURA antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, organizada por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Janeiro de 1985
2.4.21
OUTRO RIO
Nem um verso ficará somente o rio.
A memória secará somente o rio
ficará.
Na memória nem um risco ficará
do que hoje recomponho pedra a pedra
quando lembro das palavras e do vento.
Eucanaã Ferraz
Retratos com Erro, Edições Tinta-da-china, Lda., Maio de 2019
22.3.21
A ÚLTIMA PARAGEM
As rodas nas torres das minas giravam
como carrosséis num parque de diversões.
Nos pequenos jardins cresciam as rosas sombreadas de fuligem,
nas pastelarias as vespas encarniçavam-se
sobre a cobertura dourada de um pastel.
Tinha quinze anos, o eléctrico deslocava-se
cada vez mais rápido por entre as habitações,
nos prados via malmequeres-dos-brejos amarelos.
Pensava que na última paragem
se desvendaria o sentido de tudo,
mas nada aconteceu, nada,
o condutor comia uma sandes com queijo,
duas velhotas falavam em voz baixa
dos preços, das doenças.
Adam Sagajewski
Sombras de Sombras, Selecção e tradução: Marco Bruno; revisão: Jorge Sousa Braga; prefácio: Adam Kirsch, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Novembro de 2017
19.3.21
À MINHA MANEIRA
por não possuir a mentalidade minimal dum japonês
Queimo ainda bastantes palavras
ao explicar que me inclino sobre o vento
ou sobre o dorso de algum animal
Incapaz do gesto sábio
duma brisa
engulo o tempo à minha maneira
Não posso igualmente saber a savana
coisas tão simples que há nela
por exemplo a gazela
nada sei do distante e do remoto
entretenho-me por casa
a ver o sol com a minha peneira
Se mo pedirem defino harmonia
posso sempre mentir olimpicamente
e fazer haikus à minha maneira
Os Animais Antigos, edição objecto cardíaco - casa para as artes, Sociedade Unipessoal, Lda, Vila do Conde, Janeiro de 2006
14.3.21
LIGA PATRIÓTICA
As suíças,
Meticulosos, solenes, esses gestos
Redondos e ridículos,
Que envolvem o som de um mundo tão pequeno
E soleníssimo.
Madeiras enceradas com o bafo
Amarelento da respiração nacional do mando.
O país passa nas vozes, as casacas estremecem nos seus
púlpitos,
Meus amigos, a nação ergue-se
Agradecida.
Sento-me na rasa e desdourada sala do meu corpo,
Já sofri o bastante nos meus nervos doentes.
Apanho o pó das sílabas,
E recolho-me ao chão dos meus castigos:
Amar amargamente a pátria.
De norte a sul, nessa névoa de saudade e fingimento
O povo cala, a burguesia arranha,
A nobreza consente. Sou um civil da ética, falta-me
Provavelmente o baraço ao pescoço, o empenho
Das barbas.
Um gesto de grandeza pode ter a medida inútil
Dum mar árido de peixes,
Dum céu sem uma nuvem sobre o chão
Terrivelmente seco, sedento,
Se não soubermos perdoar a barbárie
À nossa volta.
É como se uma onda de vento se erguesse
Lenta mas fulminante contra o nosso perfil sonhado por outras
vozes
Quiméricas
E a nossa própria voz não tivesse de súbito
Resposta
E tudo e todos fossem sempre só
Uma pergunta.
ANTHERO, AREIA & ÁGUA, Assírio & Alvim, Junho 2010
8.3.21
A DIVISIBILIDADE: A VISIBILIDADE A DOIS
o homem divide-se também. Se o átomo é
divisível só o poeta o diz.
A mulher divide-se em gestos
extremos coloridos arenosos destilados.
Dois homens são duas divisões de uma
casa que já foi um animal de costas
para o seu pólo mágico.
A divisibilidade da luz aclara os mistérios.
A mulher tem filhos. Descobrem-se
partículas soltas um dedo mínimo
o peso menos pesado da balança
um cabelo eloquente em desagregação.
Gestos estrídulos dividem a mulher
o homem divide-a ainda.
5.3.21
TRAVESSA DOS GATOS
Para quê mais versos?
O poema está feito, cabe
inteiro nestas sílabas de pedra
onde gostei tanto de magoar os pés.
Correm ao sol de Fevereiro
- pretos, quase brancos
e malhados - os príncipes
desta terra, os únicos.
Não te atrevas a segui-los, dona morte.
27.2.21
AUTO-RETRATO
nacionalidade portuguesa
triste se alegre e sorridente quando triste
muito mais egoísta se se veste de altruísta
chefe só de família olhar cansado
calva prometedora e tendência obesa
à beira dos quarenta anos de idade
e ajoujado ao peso de vários passados
tímido e trágico e capaz de crueldade
tanta quão tamanho o arrependimento
temendo hoje não tanto já fazer o mal
como fazer algumas ou pior uma só vítima
incoerente e instável ora dado a bons bocados
como logo açoitado pelos ventos dos cuidados
poeta para mais por condição
homem que só pensar sabe afinal fazer
que vive a arte do amor a vida até como destruição
digam vossas mercês como devia ele ser
pois sempre assim seria inútil mesmo renascer
Madrid, 1972
Ruy Belo
TODOS OS POEMAS III, Assírio & Alvim, Outubro 2004
20.2.21
ERRANTE VAGUEAR
d'o que nem chega a ser
presença que se veja,
ausência a adivinhar:
a desolada teia
sem tear que a complete
com força que a enleie
em uma trama certa.
Ânsia que se deseje
e transformada em fado,
uma ramo que floresça
sem nada recear,
imagem que alivie
porém que m'enegrece
quando julgo que é dia
e já tudo anoitece.
19.2.21
POEMA DA MORTE APARENTE
Nos tempos em que acontecia o que está acontecendo agora
e os homens pasmavam de isso ainda acontecer no tempo
deles,
e suspiravam por viver agora.
A suspirar e a protestar morreram.
E agora, quando se abrem as covas,
encontram-se às vezes os dentes com que rangeram,
tão brancos como se as dentaduras fossem novas.
13.2.21
RETRATO (QUASE)
Pequenos os olhos. Nocturnos.
Breve a cintura e seios breves.
Compridos cabelos. Algas
no rastro quente e mate
do corpo longo (barco e púrpura).
Da lição do mar
quase a graça e a perícia
na arte de marear (andando).
A regra de ouro
da mulher fenícia.
Diplomata, Abril, 81
Luís Veiga Leitão
OS POETAS DO CAFÉ NO CAFÉ DIPLOMATA / PORTO 1981
12.2.21
ONDAS
Sei que me estou a afogar, mas ao menos
consigo manter de fora a cabeça.
De modo que, por favor,
não venhas tu fazer ondas.
*
OLAS
Sé que me estoy ahogando, pero al menos
logro mantener fuera la cabeza.
Así que, por favor,
no vengas tú a hacer olas.
Amalia Bautista
CORAÇÃO DESABITADO, Selecção e tradução de Inês Dias, Averno | 2018
9.2.21
[Antes não havia muros, os que passavam]
Iam com o silêncio de Deus à sua ilharga
E colhiam do chão o trevo e a hera
Como se não houvesse amanhã.
Até que alguém inventou a antropofagia,
O garfo e a colher, a faca de trinchar
E todos começamos a dar tombos
Nas veredas e nas zonas limítrofes
Dos quintais. Daí à invenção
Dos muros foi um passo, dizem alguns
Que com muita utilidade, sobretudo as crianças
E os gatos. Por mim, fazem diferença.
Estranho-lhes o peso e a condição oblíqua
Com que interferem com a minha independência.
POEIRA ESCURA, editora Eufeme, Leça da Palmeira - Portugal, Janeiro de 2021
1.2.21
RESPIRAÇÃO ASSISTIDA
de noite - névoa branca -
entre os frascos do soro
rondar a minha cama
era um trasgo
e como tal metera-se
pelas frinchas; noutra versão
coando-se através
dos nós da madeira
ou noutra ainda
imitando à perfeição
o gorgolejar da água
nos ralos: eu tremia
covardemente enquanto
ela raspava a parede
com unhas muito lentas
eu vi? ouvi a morte?
com toda a probabilidade
e por instantes
era ela - luz negra -
tentando cegar-me
Pardilhó7/9-VIII-94Lisboa27-XI-95
Fernando Assis Pacheco
RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Novembro 2003
31.1.21
A crucificação pelas imagens
Esquecemos as palavras,
as inscrições na pedra,
o espelho do mundonos ecrãs de plasma --
a crucificação pelas imagens.
Paulo Teixeira
A Comoção do Mundo, Editorial Caminho, Lisboa, 2020
27.1.21
Paisagem
Conversas
de boca de fumo para boca de fumo.
Eles comem:
a trufa-demente, um pedaço
de poesia não soterrada,
encontrou língua e dente.
Uma lágrima corre de volta para o seu olho.
A metade esquerda, órfã
da vieira -
ofereceram-ta,
depois ataram-te -
ilumina o espaço à escuta:
o jogo de tijolos contra a morte
pode começar.
12.1.21
RECEITA DE POEMA
Um poema que desaparecesse
à medida que fosse nascendo,
e que dele nada então restasse
senão o silêncio de estar não sendo.
Que nele apenas ecoasse
o som do vazio mais pleno.
E, depois que tudo matasse,
morresse do próprio veneno.
Antonio Carlos Secchin
Desdizer, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Abril de 2018
3.1.21
ELEGIA
Nunca, como a teu lado, fui de pedra.
E eu que me sonhava nuvem, água,
brisa sobre a folha,
fogo de mil cambiantes labaredas,
apenas soube jazer,
pesar, que é o que sabe fazer a pedra
à volta do pescoço do afogado.
*
ELEGÍA
Nunca, como a tu lado, fui de piedra.
Y yo que me soñaba nube, agua,
aire sobre la hoja,
fuego de mil cambiantes llamaradas,
sólo supe yacer,
pesar, que es lo que sabe hacer la piedra
alrededor del cuello del ahogado.
En la tierra de en medio, 1972
Rosario Castellanos
Poemas Escolhidos, Tradução, selecção e notas de Jorge Melícias, Prefácio de José Rui Teixeira, Antígona Editores Refractários, Junho 2020