© Domingos da Mota
31.12.24
2024-2025
© Domingos da Mota
Musa parca
Musa parca
musa muda
Adília Lopes
Apanhar ar, Exemplar n.º 358/400, Assírio & Alvim, Outubro 2010
26.12.24
27 caleidoscópio
é o meu
periscópio
revela
o que está
para lá
da água
que está
para cá.
não sei
se os hei
ou se os há
os pedaços
de perna
e braços
para lá
dos sargaços
de cá.
mas a vista
não é má.
Alberto Pimenta
O LABIRITODONTE, 7 nós, Porto, 2012
23.12.24
Soneto de Natal
Pedro Tamen
Não digo do Natal – mas da natura
de quem faz do poder um pesadelo
que aprofunda as sementes da amargura
através do garrote e do escalpelo;
não digo do Natal – mas da tortura
que macera as feridas com desvelo,
impassível à dor que já satura
os ombros causticados pelo gelo.
Dissesse do Natal – seria bom
que pudesse cantar, subir o tom
das loas e dos hinos e dos ritos,
se em vez duma esmola, tão-somente
renascesse o respeito pela gente
que povoa o Natal dos aflitos.
© Domingos da Mota
21.12.24
Solstício de inverno
de Natal, a menos que
venham sem barbas nem renas
voadoras, só e se,
para além de originais
na sua extrema nudez,
realcem as radicais
contradições do que vês.
Longe de ser um poema
de Natal, com mais do mesmo,
que se alongue sobre o tema
e reluza, quase a esmo,
este celebra o solstício
de inverno, ab initio.
© Domingos da Mota
19.12.24
A Leitura
Não te deixes enrolar!
És tu quem tem de pagar...
Põe o dedo em cada letra;
pergunta: «Por que está 'qui?»
Alexandre O'Neill
ANOS 70 poemas dispersos, Assírio & Alvim, Outubro 2005
15.12.24
Poema de aniversário
que pode ser ciática ou pior,
uma dor que não dorme, não hiberna
nem denota melhoras, apesar
das correntes, massagens, ultra-sons
e doutras abordagens fisiátricas
que exacerbam em vez de mitigar
as previsões sombrias, sorumbáticas;
malgrado o mundo em volta, sem sentido,
sujeito à profusão de ecocídios,
de guerras e disputas aguerridas,
e a braços com terríveis genocídios;
malgrado a lucidez feita num oito,
bem-vindos sejam os teus setenta e oito
8.12.24
O nosso medo
não usa camisa de dormir
não tem olhos de coruja
não levanta a tampa
não apaga a vela
também não tem o rosto de um cadáver
é um pedaço de papel
encontrado no bolso
«avisar o Wójcik
esconderijo da Rua Dluga incendiado»
o nosso medo
não voa nas asas da ventania
não se senta na torre da igreja
é terra-a-terra
tem a forma
de uma trouxa feita à pressa
com agasalhos
provisões secas
e uma arma
o nosso medo
não tem o rosto de um cadáver
os mortos são gentis para connosco
levamo-los às costas
dormimos debaixo da mesma manta
fechamos-lhes os olhos
retocamos-lhes os lábios
escolhemos lugares secos
para os enterrar
não demasiado fundo
nem demasiado à superfície
Zbigniew Herbert
POESIA QUASE TODA (1956-1998), Introdução de J. M. Coetzee, Selecção de J. M. Coetzee e Alissa Valles, Tradução do polaco e notas de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, edição Cavalo de Ferro, Penguin Random House, Grupo Editorial Lda., Lisboa, Outubro de 2024
7.12.24
O SOBRETUDO
o sorriso entretela o sonho assertoado
sobretudo o peludo que se põe de manhã
e à noite é escovado.
Sobretudo o chumaço da cultura nos ombros
e a fazenda inglesa de meia estação.
Sobretudo o cuidado que ao despi-lo pomos
em estarmos vestidos como os outros são.
OBRA POÉTICA, Editorial «Avante!», Lisboa, 1994:157
28.11.24
A noite toda
A noite toda
como a vida
é breve
pra soletrar o mundo
e o teu corpo.
Helder Macedo
RESTA AINDA A FACE, Escolha e posfácio de Paulo José Miranda, Edição Abysmo, Lisboa, novembro 2015
17.11.24
[Silêncio, terra-mãe, por favor!]
Que fiquem apenas as aves
tecendo, com bicos macios,
os rasgos agrestes da dor.
Victor Oliveira Mateus
EREMUS ET CIVITAS LUCUM Antologia Poética (1984 - 2024), Editora Labirinto, Fafe, 2024
6.11.24
Onfaloscopia
do mundo do universo
visto por fora e por dentro
do direito ou do avesso:
e sendo o centro do mundo
sempre que gira rodando
soberbamente rotundo
onde quer que esteja e quando
é sem dúvida o maior
dos umbigos e tão grande
que o universo em redor
do seu umbigo se expande
© Domingos da Mota
Pequeno tratado das sombras, Busílis, Dezembro 2018
1.11.24
De profundis
que murcharam no jardim;
as dobras do pensamento
são da cor do tempo assim
que tarda o esquecimento
dos que chegados ao fim
deixaram em testamento
uma saudade sem fim.
Do tempo não colho as rosas,
das searas o seu trigo,
e se adejam mariposas
o seu voo é tão antigo
que me perco, apesar
de ver a estrela polar.
27.10.24
QUASE-HAIKU
Mudança de hora.Atrasa-se o relógio
por dentro ou por fora?
Domingos da Mota
Eufeme n.º 23, Magazine de Poesia (Abril/Junho 2022), Editor: Sérgio Ninguém
24.10.24
Os outros
nós que somos os outros para outros
e como eles tantas vezes só
em busca de um lugar que nos acoite?
© Domingos da Mota
23.10.24
Antonio Cicero (1945-2024)
VALEU
fraude
um bluff cinzento
no catre de um frade
é silêncio e alarde
é um útero e um odre
um sabor a vinagre
de uma cabra pobre
é um pedinte abastado
é verso por lebre
de um vate falido
num café da baixa
garoto fingido
António Ferra
Jogos telúricos (um fio de nylon em pleno deserto), Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Maio de 2024
21.10.24
O ar
O ar tornou-se mais espesso,
mais pesado, mais sombrio
(quase virado do avesso)
e com um cheiro a bafio.
O risco de empestar
tudo o que mexe em redor
é real, e o fedor
será pior, bem pior.
© Domingos da Mota
19.10.24
DEPOIS
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.
Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.
Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança
se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.
NENHUMA PALAVRA E ENHUMA LEMBRANÇA, Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro 1999
18.10.24
como voltar a levantar uma árvore
pequenos galhos e os ninhos que
foram sacudidos, desconjuntados
ou desfeitos pela queda; devem ser
recolhidos e fixados novamente
nos seus respectivos lugares. Não
é um trabalho árduo, a menos que
os ramos maiores tenham sido
esmagados ou mutilados.
como voltar a levantar uma árvore, tradução de Jorge Sousa Braga, edição da Flâneur, Porto, Setembro de 2023:3
17.10.24
Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto
Este homem que esperou
à sombra de uma árvore
mudar de direcção
ao seu pobre destino
Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo
Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra
Matéria de Amor, Prefácio de Arnaldo Saraiva, Editorial Presença, Lda., Lisboa
16.10.24
ERATO DE BRAÇO AO PEITO E AS CONSEQUÊNCIAS DISSO
Tropeçou num pleonasmo imprevisto,
estatelou-se, partiu um braço.
Por azar, o braço direito.
O que quer dizer
que terá de passar a acariciar-me
com a mão esquerda.
O que não sei se será bem
a mesma coisa.
A. M. Pires Cabral
Na Morte de Erato, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Outubro de 2024
12.10.24
ENTRE GROU E GRIFO
José Emílio-Nelson
ROSA CANINA, Edições Esgotadas, Lda., setembro, 2024
7.10.24
O GUARDADOR DE RETRETES
Fornecia as chaves do WC
e papel higiénico (por uma moeda)
e assegurava a limpeza
das instalações sanitárias
O mais humilde dos ofícios
Não conheço outro
de que tanto se aproxime
o ofício de poeta
A Flor Cadáver e Outros Poemas, Assírio & Alvim, Setembro de 2024:42
26.9.24
ÚLTIMA FORMA
Baudelaire entra no ar
como uma bandeira.
Somos esses passos
perdidos no deserto:
neste lugar-comum nenhum
em pedaços.
Nem sumários.
Sumimos, sim
na sombra, no suor
e o boom do sol
– nu, solo, martelo –
com sua nota de luz
é a última ondalarme
que chega no espaço
no começo deste chão
em que vou cortando tudo
com uma faca que cega.
Armando Freitas Filho
POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX DOS MODERNISTAS À ACTUALIDADE, selecção, introdução e notas Jorge Henrique Bastos, Antígona Editores Refractários, Lisboa, Fevereiro de 2002
22.9.24
Revoadas
© Domingos da Mota
18.9.24
OS POEMAS
os poemas são assim coisas que a gente
lê nos livros de versos. há quem diga
que são coisas que a gente sente.
que se fazem quando se rima ante com
violante mas eu prefiro não perceber isso.
os poemas é quando a gente queima os
fósforos todos da carteira ou bebe o vinho
todo da garrafa ou lê um livro do
princípio ao fim ou estamos simplesmente
o olhar ou não dizemos nada ou não
fazemos nada ou caímos nus na mulher
nua ou escrevemos amo-te ou telefonamos
ao acaso ou os poemas são seres
que nascem ciclicamente. agora por exemplo
vou deixar crescer a barba.
José Alberto Marques
M. Alberta Menéres E. M. de Melo e Castro, Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1997, 2.º Volume, Círculo de Poesia Moraes Editores, Lisboa, 1979:342
15.9.24
PLEBEISMOS VULGARES
Nicles, claro!
Dizem que ficou com uma grande cachola.
Que artolas!
ÚLTIMA COLHEITA [poesia reunida 1954-2021], Carlos Nogueira [edição], Officium Lectionis edições, Porto 2022
6.9.24
CODA
Da manhã inicial e límpida
homens de palha destronaram
a chama a favor da combustão
e as palavras de que nascemos
ladram em matilha silenciosa.
Fernando Luís Sampaio
Aprender a Cantar na Era do Karaoke [Roubar o Fogo], Edições tinta-da-china, Novembro de 2018
4.9.24
AQUÁRIO
o ritmo
os moldes formais
Reparo
nos peixes dentro
de água
As ideias
no cérebro devem mover-se
de uma forma semelhante
A rima
o ritmo
os moldes formais
Joan Brossa
TRANSVERSÕES I, poemas reescritos em português por Zetho Cunha Gonçalves [de 22 poemas de Joan Brossa], editora contracapa, Vila Meã, Julho de 2024
24.8.24
Vulto
Melhor será andar fora do séquito,
21.8.24
MÁ CONSCIÊNCIA
dá-me de comer.
Se não fora ele
o que houvera de ser?
Vivo de acrescentar às coisas
o que elas não são.
Mas é por cálculo,
não por ilusão.
DE OMBRO NA OMBREIRA, publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969
10.8.24
DESCRIÇÃO DA GUERRA EM GUERNICA
O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura;
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos; com o suor da estrela
tatuada na testa.
Carlos de Oliveira
A Leve Têmpora do Vento, Antologia Poética, Selecção e nota de João Pedro Mésseder, Quasi Edições, Novembro de 2001
GINÁSTICA APLICADA
e minha ginástica. Nele me penduro
e ergo, em sua precisão de barra fixa.
Nele me exercito em pino flexível,
sílaba a sílaba, movimento controlado
de pulso, e me volteio aparatoso
na pirueta lograda, no lance bem ritmado.
Porém, se às vezes me estatelo, folha Seca
(o verso é difícil e escorregadio), meu verso,
como de vós, ri-se de mim em ar de troça.
Uso Particular (Poemas Escolhidos de Rui Knopfli), edição do lado esquerdo, Coimbra / Fundão, Julho de 2017
7.8.24
— Glória —
A glória é como uma terrível catástrofe,
pior que a casa incendiada; enquanto
se abate a trave-mestra, o fragor
da destruição repercute-se cada vez mais depressa;
e tu contemplas tudo aquilo, inane
testemunha da danação.
Como uma bebedeira a glória devora
a casa da alma, revela que trabalhaste
para coisa pouca: para ela -
ah, queria que esse beijo traiçoeiro nunca tivesse
molhado a minha face: queria
fundir-me, só, para sempre, na obscuridade, na noite.
1987 e 1996-97
Herberto Helder
OUOLOF Poemas Mudados para Português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, 19975.8.24
HAIKU DO BECO DE SÃO MIGUEL
o luto é quotidiano.
GAME OVER, &etc, Lisboa, Maio de 2002
31.7.24
Girassóis não tenho
se ele quiser hidranjas azuis
ou mesmo um pinheiro nórdico de cor turquesa e que
abre os braços com ternura
pode vir cá pintar
Compêndio de Botânica (árvores, arbustos e plantas de Vila Nova de Cerveira), Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Abril de 2022
27.7.24
[o sol]
à roda
deixando
sombras nas
costas dos trabalhadores
*
the sun
walks in circles
tossing
shadows onto
laborer's backs
Robert D. Wilson
22.7.24
RIZOMAS
que ouço desde criança
são caules submersos na minha fala
a enviar o rumor das raízes
Todos eles navegam
na superfície da minha língua materna
transportando saberes e ignorâncias
transmitindo negrumes e fulgores
cumprindo desvios e sentidos
na ameaça da certeira eternidade
do pó.
Inês Lourenço
Ainda o Lugar Incerto da Procura, Edição Glaciar, Lisboa, Agosto de 2024
18.7.24
Charleville-Mézières
mais curto
de recusa
do Nobel
foi o de Patti
(a Smith):
Rimbaud.
Francisco José Craveiro de Carvalho
10.7.24
[a ocidente e antes que soubesse]
geografia o mar atravessava
os quartos de dormir fazia a cava
por dentro das plantas quem merece
seu tempo não possui a maresia
crescendo entre muros da cozinha
ao longo corredor por aí vinha
em sombras e perfis talvez o dia
houvesse mais rigor além a rua
o muro dos jardins perto um novo
desenho de texturas e é tanto
o tempo que nos dói que quase nua
imagem vem à mão e só o povo
conhece bem a festa tem seu canto
Diogo Alcoforado
espinho quase sempre
27 exercícios com um desenho do autor, ASA Editores, S. A., Porto, Abril de 2004
9.7.24
LÍRIOS
outras mãos que não as minhas haverá para o recolher
outros olhos pelos meus lhe hão-de fitar depois a ausência.
Depois, nem isso.
Há um momento em que se estende a toalha sobre a mesa dos mortos
como se tivesse sido sempre a mesa dos vivos. Esse dia virá.
Tudo então estará certo e limpo como o esquecimento.
Ou quase assim.
Dispo agora toda esta roupa e escrevo
- sem frio nem perda nem desastre -
a partir desse dia que virá, esse dia depois de mim:
lírios crescem no acaso vivo da relva
uma leve poeira se acrescenta ao ar que não respiro.
SIRINGE, Averno, Lisboa, Março de 2017
8.7.24
DOIS POEMAS DE VIAGEM
A solidão é uma magnólia:
autocarro de gente
um cansaço de
pétalas
sem cor
escorre pelo autocarro,
onde o que não vivemos
espera chegar a casa
André Osório
Sala de Operações, Guerra e Paz, Editores, Lda., Março de 2024
5.7.24
[Bato à tua porta sem medo]
Não tinha ainda nascido
estava no ventre da minha mãe
quando uma grande tristeza
me invadiu
Nunca mais me deixou desde aí
Está comigo agora
que estou velho e doente
e o tempo me arrasta pelos cabelos
O tempo toca o tambor
Não tenho para onde ir
Deixa-me entrar
23.6.24
Quadra sanjoanina
o cravo e o manjerico
vão na rusga; e eu não corro,
mas em casa é que não fico.
18.6.24
[Como ave de arribação]
também o chapéu de palha
salta de Verão a Verão.
Francisco José Craveiro de Carvalho
As sapatilhas de Usain Bolt e outros tercetos, Companhia das Ilhas, Junho de 2015
16.6.24
[Ontem é passado]
Ontem é passadoo dia de hoje também acaba
a Primavera foge
Yosa Buson
PRIMEIRO AMOR e outros poemas, Editora Licorne, outubro de 2013
13.6.24
Tomamos a vila depois de um intenso bombardeamento
A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.
A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
- Dos que bóiam nas banheiras -
À beira da estrada.
Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...
E o da criança loura?
Fernando Pessoa
OBRA POÉTICA [Cancioneiro] I Volume, Organização, prefácio, cronologia e biografia de João Gaspar Simões, Círculo de Leitores, Lisboa, Janeiro de 1986
12.6.24
Ad nauseam
propalam a verborreia
com que o chefe da horda
tece o canto de sereia,
e matraqueiam até
à náusea os soundbites,
dando vazão à má-fé
com que arrebanha os incautos.
11.6.24
HEUREKA
ver tempo passar na pele
não cantar dogma aos ouvidos
do primeiro que passa sem ele
Nosso alibi sentir caos
possuir no sangue a senha
afastar de nós o vale
que treme olhando a montanha
Nosso corpo o mato as silvas
ter nos nervos explosão
tocar fartos mesmo quando
não temos flauta nem pão
Fernando Grade
Maria Alberta Menéres, E.M.de Melo e Castro, Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977, 2.º Volume, Moraes Editores, Lisboa 1979
10.6.24
Volta a mote
E fiz um tiro com ela
Às grades dũa janela.
Ũa dama, de malvada,
Tomou seus olhos na mão
E tirou-me ũa pedrada
Com eles ao coração.
Armei minha funda então,
E pus os meus olhos nela:
Trape! quebro-lhe a janela.
Luís de Camões
LÍRICA, Terceiro volume das Obras Completas, Edição Círculo de Leitores, Lda., Setembro de 1984, 10.ª edição.
1.6.24
O PÃO
mas quase. Na brancura.
Porém, onda de leite
a branca levedura.
Um mecanismo incerto
de ferro e madrugada.
A fome e o excesso
futuros. Na seara.
A fome e a carência
de sol(o) para a boca.
Não é ainda um campo
de areia. Ou terra solta.
Um campo descampado
um canto com bolor.
É arte que se move
minéria como a água.
Engenho de palato.
Alvéolo de pulmão.
Respira-se o exemplo
de sol. Oxigénio.
Não é ainda um círculo
branco por toda a mesa:
manchado na toalha
de sombra e aspereza.
Não é ainda uma ave
descendo sobre a pele:
um mecanismo triste
movendo a boca breve.
27.5.24
DESAPARECIMENTO PROGRESSIVO
7
Se ninguém sabe o teu nome
encoberto, se os teus dentes
apodreceram, se os pastores
não te reconhecem como o senhor
das cabras que hão-de vir,
não venhas, não serás o rei nem
o roque, viverás nessa mansarda
com as ratazanas e o muito pó
da história, será um romance
mas, crê, nada mais do que isso,
DESAPARECIMENTO PROGRESSIVO, Editora Exclamação, Lda., Porto, Dezembro de 2023
24.5.24
O POETA E O SOCIAL
O poeta tem
objectivos claros,
mesmo quando
parece obscuro.
Alberto Pimenta
PARA MESTRES E MESTRANDOS
e
OS PORTUGUESES NUNCA COMUNGARAM DO IDEÁRIO MARXISTA
- INSTALAÇÃO DE PALAVRAS EM 6 CAPÍTULOS
Edições Saguão, Abril de 2024
18.5.24
Megafones
outro porte, algum decoro,
e ficaria à míngua
de holofotes, sem o coro
de megafones falazes
que exaltam o despudor
e o propalam, capazes
de levá-lo num andor.
© Domingos da Mota
17.5.24
Música Nua
100.
ascendendo
para a terra. Espera-nos
o pó. Um pó
apaixonado.
11.5.24
DEGENERAÇÃO MACULAR
sobre a luz clara do dia.
Degeneração macular
disse o médico dos olhos.
Coisas da idade.
E mostrou a imagem de uma espécie de rio
ou ondulante verme de ventre tumefacto
que vi com o olho ainda bom
tapando a mácula.
Ainda assim gostei do nome
a mácula
a mancha
a mágoa serpentina
só não sabia que morava atrás dos olhos
que foram verdes quando havia Primavera.
Helder Macedo
in NERVO / 21 colectivo de poesia Maio/Agosto 2024, editora: Maria F. Roldão
10.5.24
Zangão
Uma oração entre zangões.
Bestiário Íntimo, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Março de 2024
5.5.24
Mãe
Tu que és
Tu que serás
E que pariste
Tu que deste o colo
E amamentaste
E que sorriste
Tu que educaste
E acompanhaste
Tu que serás
Tu que partiste
28.4.24
recado para paulo silenciário
do insecto assim votivo
e mudo?
história, se a há, é do inexacto,
do regresso impossível aos silêncios
da quente vizinhança;
e talvez seja
irrespirável a beleza:
a cigarra de eunomo ao atalhar
com seu murmúrio doce
a corda que na cítara partira.
a cigarra de bronze repetiu-a?
Vasco Graça Moura
Os Rostos Comunicantes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984
26.4.24
AVENIDA DA LIBERDADE
a pé a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
todos os anos desço a pé
a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
segurando um cartaz que
só os cegos conseguem ler
gritando palavras de ordem
que só os surdos conseguem ouvir
Embora nunca tenha descido
a pé a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
todos os anos desço a pé
a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
ou é a avenida que desce em mim
ou a liberdade que desce a avenida
que há em mim
Continuarei a descer a pé
todos os anos
a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
mesmo que não haja avenida
mesmo que eu já não esteja
nesta vida
in https://facebook.com/jorge.s.braga - 25 de Abril de 2024
20.4.24
NUMA FRONTE AUSENTE
Terra e noite,
as mãos escavam.
Insistem e desfazem-se
numa fronte ausente.
Na cabeça subsistem
algumas palavras inúteis.
A mão devagar traça
- vai traçar -
uma rede de sinais de que dependo.
A luz descobre o corpo.
Algumas palavras a mais desaparecem.
Neste instante
a pedra é nua.
António Ramos Rosa
A MÃO DE ÁGUA E A MÃO DE FOGO, Antologia Poética, Selecção e Organização de António Ramos Rosa, Posfácio de Maria Irene Ramalho Sousa Santos, «Fora de Texto», Coop. Editorial de Coimbra, CRL, Coimbra, 1987
9.4.24
VAN GOGH
Devora-me a sede de infinito.
Que vou fazer? Como resolvê-la?
Decido: saio para a noite e fito
o espaço nu, a luz duma estrela.
Eugénio Lisboa
O Ilimitável Oceano (Algumas Observações), Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, Março de 2001
8.4.24
2.
aligeira as palavras.
De quando em vez
dá-lhes sol e água.
Julgas-te para durar?
Ninguém ganha a vida
senão gastando
o que dela sobra.
O mais que fica
são passados em catadupa
sem nome nem morada.
Henrique Manuel Bento Fialho
De Má Condição, Pinturas: Maria João Lopes Fernandes, Composição: Pedro Serpa, Março de 2024:59
4.4.24
POETA JÁ NÃO SOU
Tornei-me opaco, agreste, perdi norte.
O verbo estaca. Mexe, mas não flui
Como fluía dantes, nédio e forte.
Eu sei que não devia assim queixar-me.
O tempo vai e volta, e acaso um dia,
Buscando devaneio e algum charme,
O verbo ganhe frémito e folia.
É isto: tão queridos, sem vergonha,
Os poetas mentem, troçam, manipulam,
Não há lei que bom senso lhes imponha.
Prometo não voltar a inquietar-vos.
E enquanto o sangue e a linfa em mim circulam,
Impedirei que façam de vós parvos.
(colhido, com a devida autorização, na sua página do Facebook)
31.3.24
[Cerejeiras em flor]
E no entanto
Sofrimento e corrupção
PRIMEIRA NEVE [haikus], versões de Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro de 2002
23.3.24
Pegada de carbono
Sei que não hão de restar
sequer os dentes
nas cinzas do futuro.
Talvez este poema
faça eco
num beco sem saída.
Nem todos os fantasmas
são entidades translúcidas.
Alguns são antes de tudo
a matéria escura da linguagem.
Nuno F. Silva
Sol Subterrâneo, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2024
17.3.24
FRAGMENTOS
1
Aceita o transitório; nada do que
é definitivo, e dura, te pode atingir.
2
Algo de visível perpassa
3
De noite, o vento partiu
um dos vidros das traseiras.
4
Só o ruído da noite sobrevive
à luz e ao furor matinais.
5
(Se aquelas nuvens, no horizonte,
chegassem até mim...)
6
O fragmento, porém, exprime
o estilhaçar da intensidade.
7
No último fragmento, fixa
o efémero, e repousa.
Nuno Júdice
50 Anos de Poesia - Antologia Pessoal (1972-2022), Publicações Dom Quixote, Março de 2022
16.3.24
DO SENTIMENTO TRÁGICO DA VIDA
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.
Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.
Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.
Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.
E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.
Natália Correia
Antologia Poética [in Poemas] Organização e Prefácio de Fernando Pinto do Amaral, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Julho de 2002
5.3.24
RAIZ SEMPRE PRESENTE
Raiz sempre presente, e do futuro
mistério aventurado mal ou bem
e sopro imaculado p'la manhã,
da árvore pendido um doce fruto
que derramado embora a ela puro
volta de novo, e que é voz e silêncio
dum canto renovado permanente
que para ser existirá sem música,
zumbido duma brisa acolhedora,
corrente d'água límpida a fluir
até ser a miragem do meu sonho,
princípio da beleza mavioso,
luz radiante em raios onde põe
a certeza de nunca ela o cobrir.
António Salvado
Ecos do Trajecto seguido de Passo a Passo, Edição Ricardo Neves Produção Lda., - A.23 Edições, 2014
28.2.24
sátira de John Kaspar a um poeta de mau porte
a flauta do cego
o brilho da bota
o piano de cauda
o ás da batota
um galo a fingir
de crista de prata
e o pombo a grunhir
sem selo na carta
fugi dos poetas
de patas de chumbo
fugi da má rima
um morto é defunto
o Silva das lérias
no bairro galante
é um porco em férias,
um significante
da casta devassa
um pulha tratante
que na greve dos bardos
vestiu de amarelo
e roubou um pedinte
de foice e martelo
de chave encravada
faz soneto frouxo
de sapata rota
é peixe sem lota
é o prego da bota
fugi dos poetas
de patas de chumbo
fugi da má rima
um morto é defunto
António Ferra
lengas e narrativas, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Junho de 2022
12.2.24
POEMAS QUOTIDIANOS
81
Onde vamos livres
Onde vamos presos
correr como rios
durar
como pedras
e lançar raízes
4.2.24
INSULTO AO POEMA
como tantas vezes acham alguns ingénuos
e maus leitores. Pode ser dúvida dor ou disfarce
e tantas outras coisas começadas por d como
devastação desistência despedida ou
por r como raiva rasura ressurreição. Lembro
sempre os versos de Ana Hatherly
E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta.
in Inês Lourenço, As Palavras Beijam Sem Carga Viral, pág. 6,
e Andreia C. Faria, Este Fresco Sanatório para o Sangue,
Editor Câmara Municipal do Porto, Porto, agosto de 2021
19.1.24
VER CLARO
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
Os Sulcos da Sede, Edição 1.ª, Setembro, 2001, Editora Fundação Eugénio de Andrade, Porto
17.1.24
PARAÍSO E INFERNO
de todos os Santos
Padres, seja Tomás
seja Agostinho, seja
qual for, ganhar o
Paraíso obrigará a
perder tudo o mais,
inclusive raspadinhas...
ganhar o paraíso...
mas como é ele?
não tem nómadas,
só residentes fixos,
como os beatos e santos
e recém-canonizados,
impedidos de alugar
e pior mesmo subalugar,
porque assim é perfeito,
perfeito, para alguns
papas até, e com razão,
mais que perfeito,
ou seja, já foi, era,
não recebe mais, para
já ele acabou, ganhá-lo
é pois ganhar o que na
santa teoria existiu,
mas deu-se-lhe fim:
na prática, teve fim,
eramos tantos a dizer
in eo spero, acabou,
está cheio, mais nada,
acabou, foi, não há.
calma!
os matemáticos
ainda
não concluíram
todos os cálculos.
consegue-se?
do inferno
já conseguiram.
in NERVO / 20 Janeiro a Abril de 2024, Editora: Maria F Roldão
9.1.24
Ode ao bolor
ad summam
Cheiram a mofo, a bafio,
os que de rosto sombrio
nos prometem o futuro.
Um futuro promissor?
Como se o cheiro a bolor
melhorasse o pão duro.
Fosse mole o pão doutrora,
(mais fresco que o pão d'agora)
e talvez muitos descrentes,
perante as suas promessas,
não as lessem às avessas
e não mostrassem os dentes.
Lembrado do pão amargo
que o diabo amassou,
quem dera fiquem ao largo,
pois com eles eu não vou.
© Domingos da Mota