Musa parca
musa muda
Adília Lopes
Apanhar ar, Exemplar n.º 358/400, Assírio & Alvim, Outubro 2010
Musa parca
musa muda
Adília Lopes
Apanhar ar, Exemplar n.º 358/400, Assírio & Alvim, Outubro 2010
Não te deixes enrolar!
És tu quem tem de pagar...
Põe o dedo em cada letra;
pergunta: «Por que está 'qui?»
Alexandre O'Neill
ANOS 70 poemas dispersos, Assírio & Alvim, Outubro 2005
POESIA QUASE TODA (1956-1998), Introdução de J. M. Coetzee, Selecção de J. M. Coetzee e Alissa Valles, Tradução do polaco e notas de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, edição Cavalo de Ferro, Penguin Random House, Grupo Editorial Lda., Lisboa, Outubro de 2024
VALEU
O ar tornou-se mais espesso,
mais pesado, mais sombrio
(quase virado do avesso)
e com um cheiro a bafio.
O risco de empestar
tudo o que mexe em redor
é real, e o fedor
será pior, bem pior.
© Domingos da Mota
os poemas são assim coisas que a gente
lê nos livros de versos. há quem diga
que são coisas que a gente sente.
que se fazem quando se rima ante com
violante mas eu prefiro não perceber isso.
os poemas é quando a gente queima os
fósforos todos da carteira ou bebe o vinho
todo da garrafa ou lê um livro do
princípio ao fim ou estamos simplesmente
o olhar ou não dizemos nada ou não
fazemos nada ou caímos nus na mulher
nua ou escrevemos amo-te ou telefonamos
ao acaso ou os poemas são seres
que nascem ciclicamente. agora por exemplo
vou deixar crescer a barba.
José Alberto Marques
M. Alberta Menéres E. M. de Melo e Castro, Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1997, 2.º Volume, Círculo de Poesia Moraes Editores, Lisboa, 1979:342
Da manhã inicial e límpida
homens de palha destronaram
a chama a favor da combustão
e as palavras de que nascemos
ladram em matilha silenciosa.
Fernando Luís Sampaio
Aprender a Cantar na Era do Karaoke [Roubar o Fogo], Edições tinta-da-china, Novembro de 2018
1987 e 1996-97
Herberto Helder
OUOLOF Poemas Mudados para Português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997Ontem é passadoo dia de hoje também acaba
a Primavera foge
Yosa Buson
PRIMEIRO AMOR e outros poemas, Editora Licorne, outubro de 2013
A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.
A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
- Dos que bóiam nas banheiras -
À beira da estrada.
Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...
E o da criança loura?
Fernando Pessoa
7
A MÃO DE ÁGUA E A MÃO DE FOGO, Antologia Poética, Selecção e Organização de António Ramos Rosa, Posfácio de Maria Irene Ramalho Sousa Santos, «Fora de Texto», Coop. Editorial de Coimbra, CRL, Coimbra, 1987
Devora-me a sede de infinito.
Que vou fazer? Como resolvê-la?
Decido: saio para a noite e fito
o espaço nu, a luz duma estrela.
Eugénio Lisboa
O Ilimitável Oceano (Algumas Observações), Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, Março de 2001
(colhido, com a devida autorização, na sua página do Facebook)
Sei que não hão de restar
sequer os dentes
nas cinzas do futuro.
Talvez este poema
faça eco
num beco sem saída.
Nem todos os fantasmas
são entidades translúcidas.
Alguns são antes de tudo
a matéria escura da linguagem.
Nuno F. Silva
Sol Subterrâneo, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2024
1
Aceita o transitório; nada do que
é definitivo, e dura, te pode atingir.
2
3
4
5
6
7
Raiz sempre presente, e do futuro
mistério aventurado mal ou bem
e sopro imaculado p'la manhã,
da árvore pendido um doce fruto
que derramado embora a ela puro
volta de novo, e que é voz e silêncio
dum canto renovado permanente
que para ser existirá sem música,
zumbido duma brisa acolhedora,
corrente d'água límpida a fluir
até ser a miragem do meu sonho,
princípio da beleza mavioso,
luz radiante em raios onde põe
a certeza de nunca ela o cobrir.
António Salvado
Ecos do Trajecto seguido de Passo a Passo, Edição Ricardo Neves Produção Lda., - A.23 Edições, 2014
fugi dos poetas
de patas de chumbo
fugi da má rima
um morto é defunto
fugi dos poetas
de patas de chumbo
fugi da má rima
um morto é defunto
António Ferra
lengas e narrativas, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Junho de 2022
81
ad summam
Cheiram a mofo, a bafio,
os que de rosto sombrio
nos prometem o futuro.
Um futuro promissor?
Como se o cheiro a bolor
melhorasse o pão duro.
Fosse mole o pão doutrora,
(mais fresco que o pão d'agora)
e talvez muitos descrentes,
perante as suas promessas,
não as lessem às avessas
e não mostrassem os dentes.
Lembrado do pão amargo
que o diabo amassou,
quem dera fiquem ao largo,
pois com eles eu não vou.
© Domingos da Mota